Chico Otavio

60 anos do Golpe

Famílias vivem uma angústia eterna pela falta de respostas

Torturador do Centro de Informações do Exército (CIE) contou que desaparecer com os corpos das vítimas era mais “eficaz” do que deixá-los em algum lugar

por Chico Otavio em 31/03/24 09:27

O ex-capitão do Exército Paulo Malhães, o “doutor Pablo” dos porões da ditadura, contou certa vez para dois jornalistas que desaparecer com os corpos das vítimas era mais “eficaz” do que deixá-los em algum lugar, porque as famílias vivem uma angústia eterna pela falta de respostas sobre o paradeiro do parente. Se os corpos são encontrados, segundo ele, as famílias vivem o luto, sofrem, mas a dor passa e a vida segue em frente. Pablo foi um ativo torturador do Centro de Informações do Exército (CIE) no auge da guerra suja (1969-1973), e, 40 anos depois, assumiu que criou a Casa da Morte de Petrópolis, um dos mais bárbaros aparelhos da repressão, em uma casa da serra fluminense.

O ex-capitão morreu assassinado, em 2014, no período em que relatava os crimes de sequestro, morte e desaparecimento de presos políticos em que estava envolvido.

O compositor e professor Leonardo Vieira, 46 anos, incorporou “Alves” ao sobrenome. O motivo é homenagear o avô, o jornalista Mário Alves, ex-integrante do PCBR, a organização armada de esquerda dos anos 1960/70. Léo Alves é da segunda geração de parentes dos desaparecidos políticos brasileiros. Do avô, a última notícia é que foi visto por outros presos sendo torturado, provavelmente até a morte, entre 16 e 17 de janeiro de 1970, na carceragem do Destacamento de Operações de Informações (DOI) na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Zona Norte carioca. Léo e sua mãe, Lucinha Alves, até hoje vivem cercados de interrogações sobre o paradeiro de Mário.

A última esperança de Léo Alves, no esclarecimento do destino dos restos mortais de Mário, era a reinstalação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Para ele, um dos efeitos mais danosos da posição do Governo Lula, de evitar agendas alusivas aos anos da ditadura, é a interrupção das investigações sobre os crimes ainda em aberto. Alves será um dos mestres de cerimônia da Caminhada do Silêncio, que neste domingo, dia 31, homenageará em São Paulo as vítimas dos porões da ditadura.

– Não tocar no tema, quando a gente viu a grande mobilização do Chile, no ano passado, pelos 50 anos do golpe lá, é uma atitude contra a memória. E um país sem memória, está dado a repetir os erros do passado. Fica a impressão de que ainda vivemos sob a tutela militar. Não dá para transformar o tema em moeda política. A gente não luta apenas por respostas sobre os nossos parentes. Lutamos por uma política de memória pública que consolide a democracia. O presidente Lula, no mínimo, tinha de nos receber. Isso soa como traição – disse Léo, que se diz eleitor de Lula.

O governo cancelou todos os eventos relacionados aos 60 anos do golpe militar por orientação do presidente Lula. A decisão foi interpretada como tentativa de evitar conflitos com as Forças Armadas. Além da não reinstalação da Comissão de Mortos, também foi adiada, por prazo indeterminado, a criação do Museu da Memória e Verdade, projeto anunciado pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino, no Chile.

No dia 15 de dezembro, a duas semanas da posse de Lula, a Comissão de Mortos se reuniu em sessão extraordinária e, por votação apertada, decidiu se auto-extinguir, sob a alegação de que já havia cumprido os objetivos. A sessão foi convocada pelo advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho, aliado da então ministra Damares Alves (da Mulher, da Família e dos Direitos Humano) e defensor do regime militar, que obteve maioria de quatro votos a três após trocar dois membros da comissão. Porém, embora extinta no fim do governo Bolsonaro, apareceu na nova estrutura do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, publicado no Diário Oficial da União (DOU). A reinstalação apareceu como compromisso no discurso de posse do ministro Silvio Almeida, de Direitos Humanos.

VALA DE PERUS

Uma das principais agendas da Comissão é a retomada dos trabalhos de análise das ossadas exumadas na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus. Em 1990, a Prefeitura de São Paulo localizou no lugar sacos com 1.049 restos humanos. Uma equipe do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Unifesp, encarregada da análise, já conseguiu o reconhecimento de cinco desaparecidos políticos – Dênis Casemiro, Frederico Antonio Mayr, Flávio de Carvalho Molina, Dimas Casemiro e Aluísio Palhano Ferreira. Falta ainda analisar 25% dos restos, razão pela qual a equipe espera a contratação de mais peritos para o trabalho após a reinstalação da comissão.
Os remanescentes já avaliados estavam em sacos, de forma individualizada, mas uma parte deste material está misturada, exigindo os peritos a reconstrução de indivíduos para, somente depois, compará-los com os dados fornecidos pelas famílias de 42 mortos e desaparecidos políticos. O trabalho da Unifesp é fruto de um acordo firmado em 2014, entre a União e a Prefeitura paulista, no âmbito de uma ação movida na Justiça Federal de São Paulo. O passo seguinte após a identificação de todas as ossadas será a construção de um memorial, previsto para ficar em Perus, com uma sala de estudos e um local para o destino final dos restos mortais.
Com a continuidade dos trabalhos da comissão, a Coalizão Memória e Verdade espera também que processos indenizatórios à famílias de vítimas do regime, paralisados nos quatro anos do governo Bolsonaro, possam ser concluídos, como é o caso do embaixador José Jobim, assassinado em março de 1979, após anunciar que lançaria um livro de memórias revelando detalhes da corrupção da Usina Nuclear de Itaipu.

CASA DA MORTE

Outro projeto que poderá ser atingido é a transformação da Casa da Morte, em Petrópolis, em centro de memória. Localizada no bairro de Caxambu, distante do Centro da cidade, a casa abrigava um centro de detenção clandestino durante o regime militar no Brasil e era operado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), conhecido por sua extrema brutalidade. Hoje, é alvo de uma queda de braço entre os movimentos sociais pela memória e os seus moradores, que se recusam a sair.

O imóvel já foi tombado provisoriamente pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), a pedido do Ministério Público Federal (MPF). Porém, para seguir em frente, vai precisar de recursos do governo federal para custear a indenização dos atuais ocupantes da casa, dentro do processo de desapropriação.

Única vítima sobrevivente da casa, Inês Etienne Romeu passou décadas lutando para expor a verdade sobre o que aconteceu na Casa da Morte e buscar justiça para as vítimas do regime já que muitas delas não tiveram a mesma sorte de sair da detenção vivos, como o advogado goiano Paulo de Tarso Celestino da Silva, capturado em julho de 1971, até hoje seu corpo não foi encontrado.

Recentemente, um carcereiro da “Casa da Morte” voltou a ser réu em um processo judicial movido pelo Ministério Público Federal. Conhecido como Camarão, o sargento reformado do Exército Antônio Waneir Pinheiro de Lima, é o 1º militar brasileiro a responder por atos cometidos durante o regime. Ele é acusado pelos crimes de sequestro qualificado e estupro durante a Ditadura Militar, segundo decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

A aceitação da denúncia contra o torturador representa um marco inédito no Brasil. A Lei da Anistia de 1979, impediu ao longo dos anos, o julgamento pelos crimes cometidos. O mesmo ocorreu no caso em questão quando o processo chegou à primeira instância em Petrópolis em 2017. Naquela ocasião, o juiz Alcir Luiz Lopes Neto citou a Lei de Anistia e alegou a prescrição do crime de estupro para rejeitar a denúncia.

– Ao deixar de lado tudo isso, a gente perder, acima de tudo, a oportunidade de fazer uma reflexão histórica do que foi a tortura, a violência de estado. Vale lembrar que a tentativa de golpe, em 8 de janeiro de 2023, é filha do golpe de 64. Na época, grupos significativos ainda acreditavam que a solução militar e autoritária era legítima – disse Lucas Pedretti, membro da Coalizão Memória e Verdade.

O Brasil soma, de acordo com o relatório final da comissão, 364 pessoas reconhecidas como mortas e desaparecidas. Os números divergem da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo levantamento conta 434 mortos e desaparecidos, dos quais até hoje não se conhece o paradeiro de 210.

Veja a série Tempos de Chumbo com o jornalista Cid Benjamin  

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