Apreensão domina na pequena cidade amazônica, afetada pela violência da região; prefeito diz temer falar sobre o que ocorre “fora do município”
por Rubens Valente da Agência Pública em 13/06/22 09:45
Impactada pelo desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips, que completa hoje uma semana sem solução, Atalaia do Norte (AM) tenta entender os motivos em meio a perspectivas cada vez mais sombrias, à medida em que o tempo passa, sobre o destino do indigenista da Funai e do jornalista inglês.
Nas conversas com moradores nas ruas da cidade, medo e preocupação prevalecem, já que poucos agora acreditam num acidente e muitos mencionam as constantes ameaças contra servidores da Funai e indígenas a partir da fiscalização sobre caçadores e pescadores ilegais que invadem a Terra Indígena Vale do Javari, cujo limite fica a cerca de três horas de barco de Atalaia do Norte.
Tudo acontece apenas seis meses depois que, do outro lado do rio Javari, em Puerto Amelia, um posto da polícia do Peru foi atacado a tiros por supostos 20 “delinquentes”, segundo a polícia peruana. Eles roubaram oito fuzis, uma metralhadora e 3 mil cartuchos de bala. Os tiros foram ouvidos por moradores de Atalaia do Norte. Em fevereiro, policiais militares espancaram moradores e usaram balas de borracha durante um grande tumulto na principal praça de Atalaia. Neste domingo (12) completa um ano a chacina de Tabatinga , em que sete pessoas foram mortas pela PM, que invadiu casas e aterrorizou os moradores em retaliação ao assassinato de um sargento da PM. De 2008 a 2019, houve pelo menos seis ataques a tiros na base da Funai no rio Ituí (que deságua no Javari em Atalaia do Norte).
O prefeito do município, Denis Linder Roges de Paiva (União Brasil), 47, considera muito seguro caminhar pelas ruas de Atalaia, diz que o município tem baixos índices de violência e reclama de cobertura “da mídia” sobre os desaparecimentos, que estaria fazendo Atalaia parecer um antro de narcotraficantes, o que ele nega com veemência. Por outro lado, admite ter receio quando se refere à região abaixo do Rio Solimões.
“Se é [passagem de droga], aqui não fica. Se passa por aqui, tudo é lá para baixo [Benjamin Constant, Tabatinga]. O que se passou por aqui – já denunciei – tudo é lá para baixo. Aí coloca, ‘prefeito, mas você conhece, você sabe?’ Hoje eu estou falando essas coisas, mas hoje é o Bruno, com o Dom Phillips, amanhã vai ser o Denis, prefeito de Atalaia, e se outro que estiver se expondo da mesma forma, vai ser… Aqui em si [na cidade] não tem esse cuidado para se preocupar, mas você pega uma estrada aqui, a gente vai pelo rio, a gente vai para Tabatinga… E aí quem que vai cuidar da gente? Então essa é a preocupação nossa. Ontem falei isso para o jornal, falei de novo anteontem. Mas eles querem que o cara diga, não estão se importando se amanhã quem vai desaparecer vai ser o prefeito, ou a família dele, ou outra pessoa que está se expondo dessa forma.”
Moradores salientam o conflito entre pescadores e caçadores ilegais e os servidores públicos do governo cuja missão é refrear as invasões e roubo do patrimônio da Terra Indígena Javari e defender os grupos indígenas em isolamento voluntário. A TI Javari é considerada a porção com a maior quantidade de grupos isolados no planeta. A aproximação desses invasores a um grupo de isolados pode representar a extinção dos indígenas, pois uma simples gripe, no organismo de um isolado, pode evoluir rapidamente para uma pneumonia fatal.
A polícia tem como um dos principais suspeitos dos desaparecimentos de Pereira e Dom o pescador e caçador Amarildo Oliveira, conhecido como “Pelado”, que está preso por porte ilegal de munição. Ele foi visto por uma testemunha saindo com seu barco logo depois da passagem da embarcação conduzida por Bruno Pereira na manhã do domingo (6).
Ex-vereador pelo PC do B e empresário do setor turístico, dono de pousada na cidade, Rubeney de Castro Alves, 50, disse que a fiscalização dos servidores da Funai e os pescadores e caçadores é “um jogo de gato e rato” e que o Estado deveria promover uma solução, por exemplo, o estímulo a criadouros de peixes fora do perímetro de Terra Indígena. Alves disse que Bruno Pereira estava justamente apoiando um projeto nesses moldes em conjunto com a comunidade de São Rafael.
“A visão da população é que precisa de políticas públicas. Foi feita a demarcação, que todos concordam, é preciso deixar a terra para os índios, mas se esqueceram do entorno. Oitenta por cento da nossa população vive da pesca. Tem uma demanda de Letícia, Tabatinga, Benjamin Constant [por peixe]. Todo o peixe que chega nessa cidade é oriundo de Atalaia, então tem que alimentar essa população inteira. E aí é quando naturalmente as pessoas vão encontrar peixe onde? Dentro da Terra Indígena. Aí começa esse conflito. A Funai faz a interdição porque tem que proteger a área. As pessoas precisam, não tem emprego, vivem exclusivamente da pesca. E as comunidades muitas das vezes são cooptadas para entrar na terra indígena.”
O empresário disse que há mais de três anos “ninguém vê a presença do Ibama, o Ibama nem existe mais” em Atalaia. Hoje o escritório mais próximo do órgão ambiental é o de Manaus, já que o de Tabatinga foi fechado há mais de cinco anos. Assim, funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) como Bruno Pereira e indígenas da Univaja viraram alvos por exercer o papel de repressão aos crimes ambientais. A fiscalização “se torna um obstáculo para o interesse de algumas pessoas”.
Na mesma linha, o prefeito Paiva disse considerar que os desaparecimentos podem estar ligados a “alguma rixa pessoal por causa da pesca. [Rixa gerada] na fiscalização, na forma da abordagem das pessoas”. Paiva disse que é defensor da demarcação da Terra Indígena Vale do Javari e que no seu mandato “abriu pela primeira vez” a prefeitura para nomear indígenas em diversos postos na administração municipal. Ele reclamou que a prefeitura tem sido instada a cobrir gastos que seriam da responsabilidade do governo federal, como apoio à saúde indígena, hoje sob responsabilidade da Sesai, a secretaria especializada de Saúde Indígena vinculada ao Ministério da Saúde.
O assunto dos desaparecimentos domina as rodas de conversa e casas de comércio em Atalaia do Norte. “A gente se preocupou porque a gente não tem o costume de ver essas coisas. Quando acontece um fato desses, todo mundo está estranhando, ninguém sabe [o que houve]. Não é eu, é todo mundo”, disse o comerciante Natalino Brasil de Souza, 67, que tem uma lanchonete na frente da prefeitura. Sua história simboliza um tipo de convivência comum na região: ex-seringueiro, hoje seu filho é casado com uma indígena Marubo, que até os anos 70 era um povo indígena isolado.
“A Funai aqui é a mesma história que minha avó dizia, não é carne nem é peixe. A Funai faz o trabalho dela e o povo faz o dele, é isso aí. O Bruno é uma pessoa de Atalaia, praticamente. Ele se mostrava para a gente como um cara muito bom, conversava com a gente como você está conversando. Ele era praticamente uma pessoa da família. Se você passar aqui em Atalaia um ano, dois anos, vai ser pessoa da família”, disse Natalino.
O empresário Castro Alves e o prefeito concordam que as falas do presidente da República, Jair Bolsonaro, contra terras indígenas têm estimulado discurso de ódio e o aumento da sensação de insegurança na Terra Indígena. “Aqui tem, tem também [esse discurso]. Muita gente que acha errada essa demarcação, gente que é contra, isso aí a gente não pode negar.”
“Há um preconceito natural de uma parte da população [contra indígenas], mas é pequena. A maioria da população – senão aqui já tinha virado uma guerra – aqui tem boa relação com os indígenas. Tanto que índios e não índios têm famílias, são casados, então isso é uma prova de que há uma harmonia.”
Já o líder indígena Beux Matís diz que a relação dos indígenas com os moradores da região “é negativa”. “Tanto moradores de Tabatinga quanto ribeirinhos sempre vê nós indígenas com preconceito, assim é muito ruim. Sempre negativo, não dá exemplo, não valoriza indígena, não respeita indígenas. Não tenho amigos aqui [na cidade], a gente não tem amigo. Grande preconceito. Nós somos ameaçados de violência.”
Matís disse que ouve, na rua, “que indígena não pode viver na cidade, tem que ir para a comunidade, ‘aí é território de vocês, o que vocês estão fazendo aqui na cidade?’”. “Sempre, diariamente, a gente ouve essas falas, preconceitos. Eu sou morador daqui há muitos anos, desde 2002, 2001.”
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