Nova Bento Rodrigues tem ares de condomínio urbano
por Por Léo Rodrigues - Repórter da Agência Brasil em 05/11/22 15:25
Casinhas simples de um pavimento, horta no quintal, galinheiro no fundo da casa, poucos muros e muito verde: na plataforma Google Street View, ainda é possível passear virtualmente pelas ruas do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG). As imagens disponíveis são de 2012, pouco mais de três anos antes de a comunidade ser soterrada pela avalanche de rejeitos liberada no rompimento da barragem da mineradora Samarco.
Passados exatos sete anos da tragédia que deixou 19 mortos e impactou dezenas de cidades mineiras e capixabas na bacia do Rio Doce, os moradores do distrito mais arrasado ainda esperam a conclusão das obras de reconstrução de suas casas.
Com 78 edificações concluídas, a comunidade que vai tomando forma pouco lembra aquela que ficou embaixo da lama. Os imóveis maiores e de padrão construtivo mais elevado, cercados por muros, alguns com churrasqueiras e piscinas, dão ares de um condomínio urbano e se distanciam da paisagem de uma comunidade rural.
Além das edificações concluídas, há 76 com obras em andamento. Outras 30 estão prestes a começar a construção ou permanecem em fase de elaboração de projeto. Há ainda 25 casos que foram judicializados, por falta de entendimento entre as famílias e a Fundação Renova, entidade que administra as medidas de reparação da tragédia. Ela foi criada por meio de um termo de transação e ajustamento de conduta (TTAC) firmado em março de 2016 pelo governo federal, pelos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, pela Samarco e por suas acionistas Vale e BHP Billiton.
O acordo previa que as mineradoras repassassem recursos para a Fundação Renova, que ficou responsável por gerir todas as medidas de 42 programas pactuados, entre eles, o de reassentamento. A entidade, no entanto, tem sido alvo de diversos questionamentos judiciais por parte dos atingidos e do Poder Público. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) chegou a pedir a extinção da fundação por considerar que ela não possui a devida autonomia frente às três empresas. Houve recentemente uma tentativa de repactuação do processo reparatório: conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as negociações fracassaram e foram encerradas em agosto.
Diante das divergências, há muitas questões relacionadas a indenizações, reparação ambiental e outros temas sendo tratadas judicialmente. O atraso das obras de reassentamento é assunto de um processo movido pelo MPMG: a instituição cobra uma multa de R$ 1 milhão por dia, contado a partir de 27 de fevereiro de 2021, último prazo fixado pela Justiça para conclusão do reassentamento.
“As empresas fizeram uma proposta para extinguir a ação e eles iam pagar 40% ou 60% da multa. Mas eles têm que pagar a multa integral. A proposta deles é pagar menos pra extinguir a ação e ainda parar de contar o tempo. Desse jeito, eles continuam atrasando sem sofrer novas punições”, diz Mônica dos Santos, 36 anos, integrante da Comissão de Atingidos de Bento Rodrigues.
A Samarco diz que discute a questão em juízo. Por sua vez, a Fundação Renova afirma que aguarda o julgamento definitivo da questão e que apresentou fatos novos que comprovariam que os atrasos foram influenciados por questões que extrapolam os esforços da entidade, tais como mudanças na legislação municipal, obtenção de alvarás e aprovação das famílias.
Bento Rodrigues está sendo reconstruído em um terreno escolhido pela própria comunidade, em votação realizada em 2016, e posteriormente adquirido pela Fundação Renova. O cronograma original das obras previa a entrega das casas em 2018. Mas foi somente em 2018 que a entidade aprovou o projeto urbanístico junto aos atingidos e os trabalhos tiveram início. Dessa forma, as estimativas mudaram algumas vezes até que a Fundação Renova parou de divulgar datas e o MPMG decidiu judicializar a questão.
O presidente da Fundação Renova, André de Freitas, considera que o caráter participativo e o desenvolvimento de projetos exclusivos torna o processo mais lento. Ele também afirma que a pandemia de covid-19 causou desaceleração dos trabalhos, embora reconheça que a situação é emocionalmente difícil para as famílias.
“Realmente já é muito tempo. Do ponto de vista racional, quando eu vejo a linha do tempo, eu entendo que todas as etapas que o processo teve que cumprir não privilegiaram uma lógica de celeridade. Eram outras lógicas. O processo construtivo é extremamente customizado, ele traz um uma complexidade maior e que demanda mais tempo”, acrescentou.
A situação se repete nas obras de Paracatu de Baixo, outra comunidade de Mariana que foi devastada na tragédia. Serão atendidas 80 famílias. Até o momento, nenhuma casa está concluída. Há 56 em construção, com a expectativa de entrega de pelo menos 47 ainda este ano.
Os planos de reconstrução de uma terceira comunidade devastada, até agora, pouco avançaram. Diante de diversos desentendimentos com os atingidos de Gesteira, distrito da cidade de Barra Mansa (MG), as obras não saíram do papel e o caso acabou na Justiça em 2019.
Segundo a Fundação Renova, das 37 famílias que viviam no local, 29 aceitaram um acordo para compra de uma casa em outra localidade ou para receber valores em dinheiro. Uma audiência judicial agendada para a próxima quinta-feira (8) poderá trazer respostas para as demais.
A equipe que realizou o atendimento junto às famílias chegou a contar, no pico, com 47 arquitetos. Segundo a Fundação Renova, a disposição das casas levou em conta as relações de vizinhança na comunidade destruída e cada projeto individual foi desenvolvido considerando tanto características do antigo imóvel como desejos da família, que passaram a projetar o futuro.
Algumas regras foram pactuadas judicialmente com o MPMG: as casas devem ter 20 metros quadrados a mais do que tinha na origem e no mínimo 95 metros quadrados ao todo, enquanto os lotes não podem ter menos que 250 metros quadrados. Além disso, a Fundação Renova instalou tecnologias que não existiam para a maioria dos moradores no distrito devastado. Todos os imóveis contam, por exemplo, com aquecedor solar para o chuveiro e garagens com portões eletrônicos.
Segundo o arquiteto Alfredo Zanon, especialista em obras e projetos da Fundação Renova, as famílias listaram tanto aquilo que elas queriam de volta como o que elas não queriam.
“É um processo que não é só de reassentamento. É também o resgate do modo de vida. E é aliar esse resgate do modo de vida no antigo distrito ao modo de vida que as famílias adquiriram ao longo desses sete anos. Então a gente pensa sempre que o reassentamento está olhando para o passado, mas ele olha muito para o futuro”, diz Zanon.
A religiosidade é algo que remete ao antigo distrito. Foi mantida uma distância similar entre a Igreja de São Bento e a Igreja das Mercês, bem como a posição das casas em relação a elas. No entanto, os projetos arquitetônicos de ambas, desenvolvidos pela Arquidiocese de Mariana, não lembram os antigos templos.
Missas já foram celebradas, bem como procissões que tradicionalmente mobilizavam os moradores pelas ruas. Segundo a Fundação Renova, é uma forma de estimular a manutenção dos laços comunitários e promover ambientação no novo distrito.
Outros eventos têm sido realizados aproveitando as obras já concluídas. Jovens puderam participar, por exemplo, de atividades esportivas na quadra da escola. Na praça central, rodas de viola são organizadas e, no Dia das Crianças, um telão foi montado para uma sessão de cinema.
Mônica, no entanto, não considera que os modos de vida estão sendo respeitados. Segundo a representante da Comissão de Atingidos, o projeto não é do atingido e sim dos arquitetos e da Fundação Renova.
“A gente só participa de uma fase. Nem nós nem a Cáritas, que é a responsável pela nossa assessoria técnica, foi ouvida para o projeto estrutural, para o projeto de eletricidade, para o projeto hidráulico. E a grande maioria das famílias cansou de ficar questionando, de ficar brigando e aceitou do jeito que a fundação quis. Temos dificuldade até com coisas simples como o fogão a lenha, que é muito importante para nós. Eles querem colocar fogão a lenha pré-moldado e ele não aguenta o nosso uso”, critica.
Embora o verde apareça no horizonte, ele está ausente no interior das ruas da nova Bento Rodrigues, o que deixa o visual ainda mais distinto daquela comunidade rural soterrada pelos rejeitos de mineração. Não há árvores nas vias. A Fundação Renova promete que elas ainda serão plantadas. Além disso, com altos muros de concreto, nem os gramados dos quintais das casas estão visíveis aos olhos de quem caminha pela comunidade.
Apesar do aspecto mais urbano, a retomada do cultivo de hortas ainda é um desejo de muitos atingidos. Por outro lado, a maioria já decidiu que não irá criar animais.
“Quase todos querem lá um pé de jabuticaba, um pé de mexerica, uma hortinha, mas o galinheiro não. Tinha muito cavalo criado solto e o pessoal decidiu que não quer mais porque traz carrapato. Há uma autorregulação que as próprias famílias estão trazendo pra gente”, diz Alfredo Zanon.
Diante da situação, ainda não há uma definição sobre o destino dos animais que foram resgatados e que hoje se encontram em uma fazenda sobre a guarda da Fundação Renova. Alguns atingidos avaliam que ficaram sem saída. Apesar dos terrenos serem maiores, eles seriam menos aproveitados porque possuem uma maior inclinação, diferente do antigo distrito que ficava em uma área plana. Essa característica dificultaria tanto o cultivo de horta como a criação de animais.
Com a casa pronta, o operador de máquinas Antônio Fernando da Silva, de 52 anos, não crê que terá espaço para sua horta. Ele explica que o terreno foi dividido com uma de suas irmãs e o quintal ficou bem menor do que era na casa onde vivia. “Não vai poder criar galinha nem mais nada do que tinha na roça. Tinha horta. Aqui não vai ter esse espaço. Não vai ter não”.
Mas o espaço não é o único fator. Mônica explica que, no antigo Bento Rodrigues, eles faziam captação de água bruta. Agora todo o abastecimento será canalizado e administrado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Mariana (SAAE), o que aumentaria muito os custos da criação de animais.
“Precisaremos pagar para irrigar as plantações, criar uma vaca, um porco, fazer limpeza de curral, do chiqueiro. A água bruta não vai ser restituída”.
Um possível aumento dos custos mensais vem gerando preocupações para as famílias segundo a integrante da Comissão de Atingidos, pois acredita-se que as novas casas demandarão maior investimento em manutenção. Além disso, há o receio de que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) seja bem superior.
José do Nascimento de Jesus, outro integrante da Comissão de Atingidos, corrobora com a visão de Mônica. Aos 76 anos, Zezinho do Bento, como é conhecido, não crê na retomada do modo de vida que havia no antigo distrito. “A gente morava em um paraíso, sabe? E o que é paraíso? Eu tirava leite, eu fazia queijo, eu vendia leite, eu vendia queijo e eu comia. Hoje a gente tem que comprar tudo”, lamenta.
O número de imóveis previstos sofreu alterações ao longo do tempo por motivos variados. Algumas famílias que viviam no distrito acabaram desistindo de esperar e aderiram a outra modalidade de reassentamento: escolheram um imóvel em uma localidade diferente ou receberam indenização em dinheiro. Restaram 196 famílias, incluindo novos arranjos que se formaram ao longo desses sete anos. São casos que envolvem, por exemplo, filhos que se emanciparam e saíram de casa ou casais que se separaram. Em 2020, uma decisão judicial assegurou o direito a moradia para os núcleos familiares constituídos após a tragédia.
Há pouco mais de duas semanas, a Fundação Renova anunciou a conclusão de todos os equipamentos públicos em uma cerimônia com a presença do prefeito de Mariana, Ronaldo Alves Bento. A última estrutura finalizada foi a Estação de Tratamento de Esgoto, que é tratada como um modelo moderno de sustentabilidade, de alta tecnologia e de baixa manutenção. O sistema não usa bombeamento e todo o escoamento ocorre por meio de gravidade. Além disso, não será necessário uso de produtos químicos e o tratamento ocorre com a decomposição da matéria orgânica através de bactérias e raios solares.
Segundo a Fundação Renova, a expectativa é ter cerca de 120 casas concluídas até dezembro e, a partir de janeiro, a entidade estará pronta para realizar a mudança dos primeiros moradores. Empresas que realizarão a mudança e a montagem de armários já estão contratadas. A Fundação Renova já divulga até previsão para o início das aulas na escola: fevereiro de 2023. “A mudança depende de cada um. Da nossa parte, estaremos aptos”, diz Carlos Eduardo Tannus, diretor de infraestrutura da entidade.
No entanto, os moradores têm, desde 2016, um pacto coletivo para que todos se mudem juntos, apenas quando as obras estiverem 100% concluídas. Embora esteja com sua casa pronta, Antônio Fernando da Silva reitera a existência do acordo, mas também se diz ansioso para mudar.
“Já são sete anos. A gente pensava que ia sair mais rápido. Nesse tempo, a gente perdeu colegas e parentes. Não puderam nem conhecer a casa nova”, acrescenta ele, que perdeu uma irmã recentemente.
Embora a Fundação Renova informe que cada atingido poderá definir sua data de mudança, a Comissão de Atingidos considera que há pressão e assédio sobre as famílias.
“Temos muitas casas ainda para serem construídas. As obras ficam expostas. E querem trazer as famílias para morar em um canteiro de obras. Onde fica a preocupação com a segurança? Sabemos que acidentes de trabalho podem ocorrer em obras. Como que você vai conseguir controlar as crianças? Como que você vai conseguir controlar trabalhadores? A gente vê tanta coisa ruim acontecer. Quem que vai garantir a segurança dessas pessoas?”, questiona Mônica.
Para Sandra Quintão, de 50 anos, a Fundação Renova tenta dividir os atingidos. Ela cobra a construção do seu bar e diz que sequer recebeu um projeto.
“Fundei ele em 2000 e, depois de 15 anos, ele foi embora debaixo da lama. Já me ofereceram dinheiro, mas a gente quer voltar para as nossas origens. Saí de casa com uma menina de dois anos e meio. Minha menina hoje tem nove anos, está me passando no tamanho, e pergunta: ‘mamãe, nós vamos voltar?’. Estou vendendo minhas coxinhas em uma pequena lanchonete que eu aluguei. Quero voltar. Bento Rodrigues não existe sem o bar da Sandra”.
Para a Comissão de Atingidos, não é possível pensar em mudança sem que o comércio também seja instalado para atender às famílias.
A Fundação Renova afirma que apoia mais de 50 planos de negócio. “São comércios diversos. Padaria, mercearia, restaurante, bar, doceria, sorveteria”, lista Luiz Ferraro, que atua na entidade como gerente geral de reparação integrada dos reassentamentos.
*O repórter e a fotógrafa viajaram a convite da Fundação Renova
Edição: Lílian Beraldo
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