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Lula age como se o Estado não fosse laico

Levando-se em conta a exagerada cautela do presidente diante dos militares, expressada na sua recomendação para que integrantes do governo não fizessem menção ao golpe de 1964, seria bom que ele tivesse mais coragem política

Em 10/03/24 17:16
por Conversas com Cid

Cid de Queiroz Benjamin é um jornalista e político brasileiro. Nos anos 1960 e 1970, militou na luta armada, tendo sido dirigente do movimento estudantil em 1968 e integrante da resistência à ditadura militar, responsável pelo setor armado do Movimento Revolucionário Oito de Outubro.

“Deus me poupou o sentimento do medo”. A frase é de Juscelino Kubitschek. É uma frase de efeito, claro. Mas pode ser interpretada como disposição de coragem política. Se acompanhado de lucidez, é um atributo positivo. E, agora, levando-se em conta a exagerada cautela de Lula diante dos militares, expressada na sua recomendação para que integrantes do governo não fizessem menção ao golpe de 1964, seria bom que ele tivesse mais coragem política. Ajudaria a criar uma cultura democrática. Mas a intimidação de Lula não é apenas em relação aos militares. É também diante do Centrão e das “igrejas de negócios”. Como evita travar a luta política aberta e não leva questões polêmicas para a sociedade, acaba negociando apenas entre quatro paredes. E cede. Mas, como ocorre sempre com quem aceita chantagem, só adia o problema. Logo virá outra exigência. As concessões aos evangélicos se sucedem. Lula age como se o Estado não fosse laico, por definição constitucional.

Os exemplos se sucedem. Há poucos dias foi ampliada a imoral isenção tributária para as igrejas. E isso, com o apoio de Lula e do PT. Pastores milionários compram mansões, helicópteros ou jatinhos e não pagarão impostos sobre isso. Basta que ponham esse patrimônio — assim como outros bens – em nome das igrejas das quais são os donos, e cuja economia se confunde com as deles próprios. Lula age como se o Estado não fosse laico.
Na semana em que este texto está sendo redigido, o Senado apoiou o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura, instrumento de fomento à cultura que precisava ser regulamentado. A senadora Augusta Brito, do PT, relatora da matéria, aceitou emenda de Flávio Bolsonaro para inserir algo que não estava na proposta original: as atividades culturais devem zelar pelos “valores religiosos”. Exigência da bancada de Bíblia. Mas o que tem a ver cultura com “valores religiosos”? E o que são esses valores? Se a iniciativa não fortalecê-los perderá direito ao financiamento?
Ora, um Estado laico deve garantir que cada cidadão seja livre para professar qualquer religião. Mas que, também, seja livre para não ter religião alguma, se preferir assim. Não pode ser prejudicado por isso. Como ficam as coisas, então?
E já que estamos na semana em que se comemorou o Dia da Mulher, não custa lembrar a lei recentemente aprovada que pune assédio contra elas. A lei ganhou uma emenda da bancada de Bíblia, aceita pela relatora do PT: a prática de assédio não será punida se acontecer num estabelecimento religioso. Parece o fim da picada. E é. Ainda mais porque parte expressiva das denúncias de assédio contra mulheres envolvem pastores e ocorrem dentro de templos.
Poderia seguir enumerando exemplos. Mas fico por aqui.
Num momento em que as pesquisas mostram um declínio da aprovação de Lula, é um equívoco considerar que concessões desse tipo vão fazer com que o terreno perdido seja recuperado. É preciso ganhar uma parcela dos evangélicos pela política, como trabalhadores que são. Lula passar a andar com um Bíblia embaixo do braço não vai resolver o problema.
Em comparação com Lula, a direita cresceu porque está mostrando a sua cara, fazendo política e travando a luta ideológica. Enquanto isso, a precaríssima comunicação do governo fala em bobagens de mau gosto e muito pouco percebidas pelo povo como como o tal “Pibão do Lula”. Só falta dizerem que ele também é imbroxável.
De qualquer forma, faço uma proposta de emenda constitucional, sugerindo que ela seja levada ao Congresso por algum deputado ou senador defensor do Estado laico. Sei que ela não terá o apoio da bancada evangélica e, talvez, nem da bancada governista, como se viu nas linhas acima. Mas insisto em que é algo importante para o fortalecimento da democracia e do Estado laico.
Adianto que a proposta que apresento foi retirada da primeira Constituição da República, aprovada no fim do século 19, tendo sido garimpada pelo amigo Gilberto Maringoni, professor da Universidade Federal do ABC. A sua aprovação, 133 anos depois, seria um gigantesco passo adiante em relação à situação que vivemos. É curioso, mas, às vezes, depois de um recuo é preciso avançar sobre os mesmos passos.
Vamos à proposta. (Na redação mantive a ortografia da época, como se verá)

TITULO PRIMEIRO
Da organização federal
Art. 1º A Nação Brazileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a Republica Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brazil.
(…)
Art. 11. E’ vedado aos Estados, como á União:
(…)
2º Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercicio de cultos religiosos;
(…)
SECÇAO II
DECLARAÇÃO DE DIREITOS
Art. 72. A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade nos termos seguintes
(…)
§ 3º Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.
§ 4º A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.
(…)
§ 6º Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos publicos.
§ 7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção official, nem terá relações de dependencia, ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados.
(CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL – 1891)

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