Presidente argentino pede "reconciliação com militares" em comemoração dos 42 anos do conflito
Em 04/04/24 10:24
por Coluna da Sylvia
Sylvia Colombo nasceu em São Paulo. Foi editora da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e atuou como correspondente em países como Reino Unido, Colômbia e Argentina. Escreveu colunas para o New York Times em Espanhol, o Washington Post em Espanhol, e integra os podcasts Xadrez Verbal e Podcast Americas. Entrevistou a vários presidentes da regão. Em 2014, participou do programa da Knight Wallace para jornalistas na Universidade de Michigan. É autora do "Ano Da Cólera", pela editora Rocco, sobre as manifestações de 2019 em vários países da regiõa. Vive entre São Paulo e Buenos Aires, enquanto viaja e explora outros países da Latam
Túmulo de soldado argentino no cemitério das Ilhas Malvinas
Na semana em que os argentinos rememoram o início da Guerra das Malvinas, em 2 de abril de 1982, o presidente Javier Milei chamou as Forças Armadas a uma “nova era de reconciliação”, que faria parte de um de seus projetos algo utópicos de declarar um Pacto de Maio, no mês da independência argentina, do qual participariam todos os governadores, todos os partidos e, agora, também o Exército.
A relação de Milei com os direitos humanos significa uma guinada numa área em que a Argentina é vanguardista. O país já condenou a mais de mil repressores, e, ainda nos anos 1980, elaborou as primeiras listas de desaparecidos e colocou os líderes do regime militar (1976-1983) no banco dos réus, durante o Julgamento das Juntas, retratados no filme “Argentina, 1985”.
A opinião sobre o período ditatorial do mandatário é explicada parafraseando as palavras do comandante da Marinha, Emilio Massera, que liderou a tortura e as desaparições dos anos de chumbo. Milei defende a ideia de que o golpe militar foi produto de uma guerra, equiparando a violência do Estado com a dos guerrilheiros, o que não é aceito pelos principais organismos de defesa dos direitos humanos.
O próprio Estatuto de Roma estabelece que os crimes cometidos por civis prescrevem, mas os cometidos pelo Estado, não. Por isso, na Argentina, eles vêm sendo julgados até hoje.
Ao relativizar esse consenso, Milei abre as portas para que, em primeiro lugar, seja iniciado um processo de julgamento dos ex-guerrilheiros (como Montoneros e o ERP), em segundo, que se inicie o corte dos aportes que o governo faz a instituições como as Mães e as Avós da Praça de Maio, e, em terceiro, para uma ação muito mais polêmica, porém defendida por sua vice, Victoria Villarruel, de começar a anistiar os repressores militares presos. Villaruel é filha de um militar que batalhou na Guerra das Malvinas.
Neste sentido, reivindicar os militares e pedir uma conciliação está em sintonia com esse movimento de reaproximação dos mesmos à política.
Depois da Guerra e do fim da ditadura, os militares saíram de campo desmoralizados. Haviam perdido o conflito de forma vergonhosa, mandando 648 rapazes argentinos a morrer nas ilhas, e entregavam ao primeiro presidente democraticamente eleito, Raúl Alfonsín (1983-1989), um país quebrado economicamente.
Desde então, os militares nunca mais opinaram nem participaram das decisões políticas. Pelo menos até agora.
Sobre as Malvinas, de modo mais específico, há muito que pode ser feito para melhorar a vida tanto dos argentinos como dos islenhos.
É certo que há um artigo importante da atual Constituição argentina que afirma que é dever de todo mandatário nunca deixar de lutar pela soberania das ilhas. Todos os ex-presidentes e o atual jamais deixaram de reafirmar que defenderiam essa bandeira, a única que une a todos os argentinos, da esquerda à direita.
O caso é que a discussão pela soberania está travada num dilema difícil de romper. Se por um lado existe de fato uma resolução das Nações Unidas, dos anos 1960, de que ambos os países, Argentina e Reino Unido, deveriam negociar a questão da soberania das ilhas; ,de outro, o Reino Unido considera que essa decisão não tem mais vigência depois que, de fato, a Argentina invadiu as ilhas. Afinal, houve uma guerra, e a Argentina saiu derrotada.
De lá para cá, houve diferentes posições dos governos argentinos com relação a como atuar diante das Malvinas. Por exemplo, na gestão de Carlos Saúl Menem (1989-1999), houve gestos de aproximação com o governo e a população da ilha, como a promoção de eventos entre os dois países, e os voos especiais para levar familiares de vítimas a finalmente visitarem a sepultura de seus filhos. Durante a ditadura, foi proibido tentar trazer os corpos dos argentinos mortos para serem enterrados no país. Eles estão, até hoje, num cemitério inóspito onde o vento não para de soprar. Nos anos 1990, foram realizados voos para levar esses familiares a conhecer as tumbas de seus seres queridos.
Já no período kirchnerista, a coisa ficou mais difícil, pois Cristina Kirchner foi mais hostil aos islenhos e reivindicou as Malvinas de modo aberto em diversos fóruns. Os islenhos não ficaram quietos e fizeram um referendo apenas para provar ao governo argentino que queriam continuar a ser parte do Reino Unido. A proposta saiu vencedora com mais de 90% dos votos.
Nos últimos anos, uma iniciativa ainda mais interessante foi levada adiante, o trabalho de identificação dos corpos no cemitério de Darwin, que antes não existia. Cada soldado morto e enterrado na ilha aparecia identificado apenas como “Soldado argentino, apenas conhecido por Deus”. Os argentinos, vanguardistas também no que diz respeito à antropologia forense, fizeram um trabalho de exumação e análise de DNA, e hoje a maioria das sepulturas leva o nome do soldado que lá está. As famílias foram levadas até as ilhas, e pela primeira vez puderam chorar nos túmulos de seus filhos e irmãos.
Enquanto a questão do debate da soberania parece impossível de resolver _os islenhos se consideram originais das Falklands (como chamam as ilhas) e muitas famílias estão lá há mais de nove gerações_ gestos como esses são muito mais eficientes.
Por exemplo, seria possível incrementar o acesso às ilhas, hoje apenas feito pelo Chile ou por um raro voo que sai de Río Gallegos. Todos os insumos e medicamentos que os islenhos precisam, ou vêm de Santiago ou de Londres.
Se viessem de Buenos Aires ou mesmo de São Paulo, custariam bem menos. Também nada impede que garotos das Malvinas possam estudar na Argentina, em vez de serem enviados ao interior da Inglaterra aos 17 anos para completar a faculdade, barateando os custos para o governo local, que hoje custeia toda a educação universitária dos nascidos nas Malvinas/Falklands. E os argentinos poderiam se beneficiar também em termos de ciência, pesca e eventos culturais e esportivos _tanto as ilhas como o continente adoram o futebol e o rugby.
Mais que de grandes decisões e negociações políticas para destravar a questão da soberania, ambas as sociedades, a Argentina e a dos habitantes das Falklands/Malvinas, poderiam trabalhar por um intercâmbio cotidiano, como ocorria antes da invasão das ilhas, beneficiando a ambas populações.
Usar a narrativa da Guerra para ganhar apoio político e, no caso de Milei, chamar os militares para ter um papel mais protagonista no governo, não parece ser o melhor caminho.
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