O momento difícil pelo qual o governo e o país passam não é resultado de uma campanha negativa das oposições
por Creomar de Souza em 25/03/21 10:26
Na semana que passou, a CNN dos Estados Unidos deu a seguinte manchete (tradução livre): “Sem vacinas, sem liderança, sem luz no fim do túnel. Como o Brasil se tornou uma ameaça global”. Algumas vozes se levantaram para denunciar mais uma vez a conspiração da imprensa internacional, lembrando que reportagens alarmistas desse tipo já haviam sido publicadas pelo The New York Times e pelo Washington Post, jornais supostamente “esquerdistas”. Haveria, portanto, campanha internacional contra o Brasil.
A tese da conspiração internacional não é nova. Contudo, à medida que as falhas do governo se tornaram inegáveis, inclusive para parte de seus apoiadores, começaram a surgir ventos de mudança narrativa. O cavalo de pau narrativo iniciou-se com o discurso proferido pelo presidente no dia 23 de março. Os quatro minutos de fala lembraram os melhores momentos da narrativa de Alexandre Dumas em o “Homem da Máscara de Ferro”. O contraste das falas do presidente entre março de 2020 e março de 2021 dão o tom do quanto os caminhos até aqui delineados estavam equivocados. No entanto, há limites claros do que pode fazer uma nova narrativa ou um discurso de ocasião.
Como desdobramento do discurso, ou seu segundo ato, a Presidência da República reuniu-se com outros atores institucionais importantes e exortou os presentes na construção de uma reação conjunta à pandemia, ainda não reconhecida como tempestade perfeita. Ao não reconhecerem de maneira abrangente a gravidade da situação, corre-se o risco de que as medidas de solução do problema sejam pouco eficazes. Afinal, só é possível combater um problema ou uma doença quando há o reconhecimento do paciente de que está doente. A notícia de que o Ministério da Saúde alterou critérios tornando mais difícil registrar os óbitos causados pela covid-19 não é nada auspiciosa nesse contexto.
Sob o risco de se assemelhar a um enfermo que não se reconhece como tal, o governo ainda flerta com o risco de culpar outros pelos seus equívocos. De esquerdistas nacionais a conspirações estrangeiras fomentadas por uma mídia globalista, ainda se percebe o flerte com a fuga da realidade em falas e símbolos. E isso permite uma reflexão em paralelo com outro momento crítico da história nacional, quando o Regime Militar, pressionado por uma onda de questionamentos acerca de desaparecimentos, torturas e prisões arbitrárias, reagia com a ideia de que havia um complô contra o país.
O problema é que a técnica de transferir responsabilidades para o estrangeiro ou para uma quinta-coluna nacional é manifestamente ineficaz. De fato, nenhuma campanha de imagem ou discurso oficial edulcorado é capaz de mudar a opinião pública nacional e internacional diante de um cenário devastador. No passado, de pouco adiantou a promoção da imagem de país ordeiro e trabalhador diante da realidade que se impunha com irritante insistência: as liberdades cerceadas e as arbitrariedades em profusão. Hoje também serão necessárias mais que falas difusas e simbolismos para mudar a opinião que se consolida acerca da incapacidade de nossa liderança em aplacar o sofrimento dos cidadãos-eleitores.
É hora de assumir responsabilidades e o primeiro passo seria reconhecer o retumbante fracasso das estratégias empregadas até agora na condução do país em diversos campos, a começar pela saúde, mas também nas Relações Exteriores, na economia e no meio ambiente. A imagem de um país sem governo, sem vacinas, sem luz no fim do túnel, que se transforma em ameaça global como viveiro de novas variantes do vírus, não será dissipada com retórica, diatribes contra a imprensa ou promoção irreal de uma imagem idealizada e falsa. A imagem só vai mudar quando a realidade que lhe dá substrato for alterada.
Apenas uma nova atitude será capaz de começar a restaurar a reputação do país no exterior e a credibilidade das instituições internamente. E isso deve ser feito não para aparecer bem na foto, mas por imposição moral, dever humanitário e responsabilidade política diante do povo brasileiro, para quem o sofrimento e as mortes que poderiam ser evitados não constituem imagem abstrata divorciada da realidade, mas a dura, tangível e muito concreta sina de quem vive num país à deriva.
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