Crônicas Ambientais

Tragédias locais

‘Eles não ligam pra gente’

Natal tem mentalidade provinciana, no sentido mais negativo do termo. Falamos o dia inteiro sobre o RS, mas não falamos das tragedias locais.

por Élida Mercês em 22/05/24 10:16

Ligo o rádio e, não importa a emissora ou horário, os assuntos são sempre os mesmos. Talvez a pauta seja única. Mas se não for, é um caminho para economizar o tempo destinado ao copiar e colar característico da imprensa no Rio Grande do Norte. Na TV, o chá de revelação do sexo do bebê hipopótamo divide espaço com a coluna social. Coluna social dos bandidos que protagonizam o roteiro do “quem morreu, quem matou”, responsável pela normalização dos crimes. Na mesma medida em que intensifica a percepção de insegurança que nos aprisiona. Desde o início de maio, a tragédia no Rio Grande do Sul, devastado por inundações causadas pelas chuvas, é debatida o dia inteiro, todos os dias, nos canais locais. Só não há espaço para falar sobre as tragédias que nos afligem aqui todos os dias. Eles não ligam pra gente.

A mobilização da pauta única tem efeitos práticos. Correios, supermercados e shoppings de Natal, capital potiguar, são exemplos de ambientes transformados em pontos nos quais é possível ver o imenso volume de doações, de toda natureza, para a população do RS. Como bons nordestinos, não sabemos ser indiferentes às dores do outro. Mas quem está dando atenção às nossas dores? Eles não ligam pra gente.

Mergulho em Ponta Negra

Essa pergunta tomava conta dos pensamentos a cada mergulho no mar de Ponta Negra, que, desde janeiro, acontecia três vezes por semana, em aulas de natação em águas abertas. A ida frequente ao mar faz parte do tratamento da asma, intensificada pela Covid, que transformou crises ocasionais em companhia permanente. A prática do esporte resultou em uma melhoria significativa da saúde, assim como permitiu a observação do mar por uma perspectiva até então desconhecida e ainda mais encantadora. O mar é vida!

Pode parecer confuso pensar em como uma experiência tão boa pode ainda deixar espaço para reflexões sobre as tragédias da cidade, mas não é. Nadar no mar é conhecer a água. É observar a consistência, a limpidez, o cheiro da maré. E, nem sempre esta é a realidade de Ponta Negra. Por vezes a água se apresentou malcheirosa e turva, ao ponto de dificultar a visão a um palmo de distância do nariz, mesmo em semanas com condições próprias à balneabilidade.

Levantar a cabeça da água, de dentro do mar, e olhar ao redor é ver o estado de deterioração do Morro do Careca, que se agrava todos os dias aos olhos de todos. É ver as tubulações de drenagem de águas pluviais despejando todo tipo de coisa no mar, mesmo em dias ensolarados. Nos dias de chuva, o volume dessa água é assustador.  É ver que na areia da praia, inexistente na maré alta, o lixo humano se revela no mesmo local onde os pescadores recolhem os peixes da rede puxada do mar, que também recebe o esgoto dos banheiros públicos, construídos pela Prefeitura.

Essa areia termina (ou começa) no encontro com as pedras do enrocamento feito para proteger o calçadão da força do mar. Lá onde os ratos fazem morada. Eles dividem o alimento com a revoada de pombos que toma toda a extensão da orla de Ponta Negra. Por causa das pedras, o acesso humano ao mar só acontece por escadas de madeira, instaladas sobre as pedras, que, além de escorregar, não oferecem segurança a quem deseja lavar a alma nas águas mornas daquela praia.

Tragédia iminente

O Morro do Careca, mais importante cartão-postal de Natal, ainda está de pé por obra e graça da natureza, somente dela, que nos deu o monumento de presente e observa a falta de cuidado a ele, que atrai turistas de todos os lugares do mundo. Além da interdição à subida ao topo do Morro, em 1997, até agora, absolutamente nada foi feito para evitar que ele desabe. Tragédia iminente. Eles não ligam pra gente.

A limpeza do mar, que recebe esgoto in natura de uma cidade como Natal, que tem o turismo como principal atividade econômica, e conta com menos de 50% da área saneada, se dá também por conta da natureza, apenas, que tem lutado muito – e sozinha – para garantir períodos de balneabilidade mínima ao uso humano, mesmo com o lançamento ininterrupto dos dejetos ali.

Enquanto Iemanjá, a rainha das águas, luta para manter a própria casa limpa, o barraqueiro não quer que placas informem a impropriedade da praia aos banhistas. Isso afugenta os clientes. O comerciante, afirma que, apesar do esgoto, ninguém teve nada sério. A jornalista, que tem como ofício acompanhar o cotidiano da cidade, diz que falar sobre o assunto é ser contra o RN. Afugenta os turistas. Eles não precisam saber da verdade, até chegar aqui, quando a realidade se impõe.

As imagens de Ponta Negra utilizadas pela Empresa Potiguar de Promoção Turística (Emprotur), vinculada à Secretaria de Turismo do RN, e pela Secretaria Municipal de Turismo de Natal (Setur), garantem a maquiagem ao utilizar fotos tratadas para esconder o buraco da erosão no Morro do Careca.

Eles não ligam pra gente

Assim, seguimos coletando doações para pessoal do RS, que realmente precisa de toda a ajuda possível. Enquanto, por aqui, troquei o mar pela piscina depois de a praia do Morro do Careca ter passado um mês imprópria para banho, após o registro de quantidade de coliformes fecais quatro vezes maior do que a tolerável ao contato com a pele humana, em uma amostra de 100 ml. Mais fezes do que água. Não dava para escolher entre tratar a asma e contrair hepatite, cólera, leptospirose, infecção bacteriana, problemas de pele, entre outras mazelas. Se o bombeiro militar só entra no mar das praias urbanas de Natal se houver afogamento, por que eu continuaria a fazer isso?

Eu tenho informação e posso decidir não ir à praia.  Mesmo indignada com a privação do uso de um espaço público pela postura irresponsável e, porque não dizer, criminosa da Prefeitura, do Governo do Estado, de vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, Ibama, Patrimônio da União, Ministério Público e, claro, Imprensa. Mas, e quem não tem acesso às informações que eu tenho?

Enquanto escrevo essas linhas, lembro que em fevereiro de 1996, o Pelourinho, na Bahia, e o Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, se tornaram palco de gravação do clipe da música “They don’t care about us”, de Michael Jackson. Com direção de Spike Lee e participação do Olodum, o clipe começa com a imagem de um sobrevoo do Cristo Redentor e uma voz dizendo, em português: “Michael, eles não ligam pra gente”. Quase três décadas depois do lançamento do clipe, a realidade é a mesma.

* Élida Mercês é jornalista, cearense, e mora em Natal

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