Não há precedente na experiência internacional de um Estado que esteja se desfazendo de sua principal empresa de energia elétrica às vésperas de uma crise hídrica
por William Nozaki em 18/06/21 16:23
O Brasil vive sua pior crise hídrica em 91 anos. Desde que o país começou a medir os níveis de chuva, em 1931, os registros de setembro a maio nunca foram tão baixos, e a estação mais seca do ano se inicia com os reservatórios em nível crítico. Como 64,9% da matriz elétrica brasileira é composta pela produção das hidrelétricas, a elevação de tarifas, a possibilidade de racionamento de água e luz e o risco de apagões se projetam sobre a economia.
A falta de chuvas, no entanto, não pode ser tratada como a única responsável por esse cenário. Enquanto o maior subsistema do país, o Sudeste/Centro-Oeste, é o mais afetado e opera no patamar mais baixo desde 2015, com 32,1% de sua capacidade, os reservatórios do Norte e Nordeste operam com capacidade, respectivamente, de 84,5% e de 63,4%. A cheia do Rio Negro, na região Norte, bateu recordes históricos e tem provocado estragos em Manaus e outras cidades.
Chove muito onde não deveria e chove pouco onde mais se precisa. Tal mudança no regime hidrológico é menos obra de São Pedro e mais resultado de interferências humanas. No Brasil, a expansão da fronteira agropecuária com queimadas e desmatamentos tem provocado alterações nos fluxos aéreos maciços de água que, sob a forma de vapor, transitam das áreas úmidas da Amazônia para as regiões Centro-Oeste e Sudeste, nos chamados “rios voadores”.
Vale destacar que em 2020 a agropecuária foi responsável por 73% das emissões de CO2, de acordo com o Observatório do Clima. E esse quadro deve piorar, pois as usinas térmicas serão utilizadas com mais intensidade para suprir o déficit hidroelétrico. Em maio de 2020, as térmicas responderam pela geração de 9,4%, em maio de 2021 elas entraram com cerca de 15% e podem atingir mais de 20% no próximo período, informa a CCEE. Esse tipo de usina queima combustíveis, gerando mais gases de efeito estufa.
Além disso, as térmicas são mais custosas e impactam diretamente na elevação das tarifas de energia. Segundo a ANEEL, a aplicação da bandeira vermelha 2 em junho deste ano pode custar cerca de R$ 2,7 bilhões a mais para os consumidores. De acordo com a FIESP, esse quadro pode se agravar com a privatização da Eletrobrás cuja modelagem contestável pode custar cerca de R$ 460 bilhões em 30 anos.
A Eletrobrás reduziu em 80% seus investimentos entre 2015 e 2020, caindo de R$ 15,62 bilhões para R$ 3,12 bilhões. O parque gerador da companhia compõe-se de 48 hidrelétricas, 12 termelétricas, 62 eólicas, duas usinas nucleares e uma central fotovoltaica, além das subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e metade de Itaipu. A falta de investimentos tem contribuído para a atual situação crítica. Trata-se do maior parque elétrico da América Latina.
No mundo, Canadá, Noruega, Suécia, Venezuela e Brasil são os únicos países cuja energia hidráulica é a principal fonte primária de geração de energia elétrica. Em todos, essas empresas são estatais. Ao que tudo indica, não há precedente na experiência internacional de um Estado que esteja se desfazendo de sua principal empresa de energia elétrica às vésperas de uma crise hídrica.
Para além dos nexos naturais da crise energética, o modelo de desenvolvimento econômico, a falta de planejamento coordenado e a redução de investimentos públicos são as causas provocadoras da crise. A solução para esse cenário passa não apenas por esperar a graça divina da natureza e das chuvas, mas por alterar o nosso padrão econômico-energético.
William Nozaki é coordenador-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP) e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
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