Pequim investe em novos parceiros comerciais e analistas projetam cenário “menos otimista” para produtores brasileiros
por Igor Patrick em 06/04/21 18:26
Enquanto tenta administrar rusgas diplomáticas e garantir o acesso a vacinas, o Brasil ganhou mais um motivo para se preocupar com a China. Durante as chamadas Duas Sessões — o encontro legislativo anual do Congresso Nacional do Povo — Pequim chancelou o novo Plano Quinquenal, que vai guiar os próximos passos do país até 2025. No extenso documento, a amarga novidade para o agronegócio brasileiro: o estabelecimento de metas mínimas para a produção de soja nacional.
Maior importadora do grão no mundo, a China passará a obrigar que suas províncias produzam anualmente pelo menos 650 milhões de toneladas de grãos e mantenham 6,6 milhões de hectares de terras aráveis de alta qualidade, mesmo com possíveis desastres naturais. As medidas também preveem cinturões dedicados à agricultura de grande escala e o desembolso de volumosos subsídios para produtores de grãos. A decisão vai ao encontro das tentativas de Pequim em reduzir a dependência de Estados Unidos e Brasil para garantir a segurança alimentar do país.
A soja é indispensável para a China. O produto é usado na produção de temperos, molhos e do tradicional tofu. Sua principal função, porém, é a alimentação do enorme plantel de suínos do país, animal considerado essencial na culinária chinesa.
Doutor em Desenvolvimento Rural com pós-doutorado na Universidade Agrícola da China, o professor Fabiano Escher destaca que o boom econômico dos últimos 40 anos pressionou a demanda por proteína em um país com poucas terras aráveis disponíveis para manter a criação de animais para corte.
“Está em curso um processo de mudança significativa na dieta nacional. Antes imperava o chamado padrão 8-1-1: oito partes de grãos, uma de carne e uma de frutas. Esta proporção atualmente é de 4-3-3. Em 1990, o consumo per capita de carne era de 16 quilos, hoje são 49, 31 quilos destes apenas de suínos”, explica o professor.
Escher explica que a entrada da base da pirâmide econômica no mercado consumidor alimentar trouxe transformações profundas na pecuária nacional. “Se na década de 1970 o normal era o camponês criar dois porcos no fundo de casa alimentado com restos, [atualmente] 36% do abastecimento de carne suína vem de grandes empresas administrando porcos industriais, que comem ração à base de milho e principalmente soja”, detalha.
Se em 2000, a China importava cerca de 13 milhões de toneladas da commodity, em 2020 este número saltou para mais de 100 milhões de acordo com dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Brasil e Estados Unidos sustentaram praticamente sozinhos o volume demandado pelos chineses durante décadas. As flutuações no mercado causadas pela pandemia e, sobretudo, as rusgas diplomáticas mostraram aos chineses a necessidade de um plano B.
Ainda no ano passado, Pequim fechou acordos inéditos para compra de soja em países sem grande tradição no cultivo do grão. Apostando no aparecimento de novas áreas de plantio com as mudanças climáticas, o Ministério do Comércio assinou um acordo para combinar as áreas de produção de soja e construir uma aliança industrial com a Rússia. Até 2024, a China espera importar pelo menos 3,4 milhões de toneladas dos russos. Compromissos semelhantes também foram assumidos com Etiópia e Tanzânia. As quantidades ainda são irrisórias e nem de longe atingem a demanda nacional. Porém, quando somadas às novas diretrizes para plantio doméstico, devem servir de alerta para o governo brasileiro.
Quem avisa é a professora da Universidade Politécnica de Hong Kong, Hairong Yan. Considerada uma das maiores pesquisadoras chinesas nas áreas de mudança agrária e soberania alimentar na China, Yan diz que a Rússia e os países do Leste Europeu têm terras agrícolas prontas para o cultivo de soja. Ela também acredita que os acordos fechados com nações africanas visam o longo prazo e haverá tempo para que cada um deles desenvolva as capacidades agrícolas.
Há ainda uma preocupação adicional até agora ignorada pelo governo brasileiro: o custo ambiental. “A América do Sul tem sido um grande fornecedor, mas o preço da expansão da soja é o desmatamento”, pontua a professora.
Domesticamente, a decisão de apoiar produtores chineses também têm motivações sustentáveis. “Tradicionalmente, os agricultores chineses no Nordeste da China, que é a principal região produtora de soja, alternam entre soja e milho. A crescente importação de soja pressionou os agricultores domésticos a desistir de sua produção de soja e passar a cultivar apenas milho, mas isso não é bom para a sustentabilidade do solo. Encorajar agricultores domésticos também cumpre essa função ecológica”, ressalta Yan.
A opinião é compartilhada por Escher. “No curto prazo, a China vai continuar comprando muito. Mas eles não planejam para dois anos e sim para décadas, meio século. A questão ambiental vai ser cada vez mais importante. A China busca liderar as iniciativas de combate às mudanças climáticas e já fala em exigir que pelo menos 50% da soja brasileira seja rastreada [sustentável e livre de desmatamento] até 2023”.
O professor diz ainda que o governo federal erra ao ignorar a destruição dos biomas nacionais por agropecuaristas e prevê que, se as iniciativas chinesas apontadas pelo novo Plano Quinquenal vingarem, o cenário tende a ser “menos otimista do que as elites agropecuaristas brasileiras imaginam. Ainda não é nada catastrófico, mas os chineses estão mexendo os pauzinhos para reduzir essa dependência no futuro”, prevê.
Ao menos oficialmente, a China minimiza o impacto que as mudanças podem ter para o Brasil. Em entrevista ao MyNews, o ministro-conselheiro para o comércio da embaixada da China no Brasil, Qu Yuhui, diz que “diversificar vendedores não implica em diminuir a importância do Brasil”.
“Estamos garantindo outras fontes porque não sabemos se só [a produção do] Brasil vai ser o suficiente. No curto prazo, as medidas não vão afetar nossa parceria e ainda há muito potencial a ser explorado no mercado brasileiro”, garante o chinês, apontando ainda que há pouco espaço para a expansão da soja chinesa e que ainda vai demorar algum tempo para entender o impacto das novas diretrizes do governo nas cadeias produtivas da China.
Qu, porém, não descarta a possibilidade da demanda pela soja brasileira ser menor. “A pandemia colocou muitas dúvidas sobre a segurança alimentar, algo que o governo chinês quer garantir. Além disso, temos trabalhado para implementar um novo modelo de desenvolvimento baseado na dupla circulação, tornando o mercado e o consumo doméstico as forças motrizes do crescimento econômico chinês”.
Otimista, ele diz que o novo cenário talvez sirva como incentivo para maior diversificação do comércio bilateral com o Brasil, já que “autoridades brasileiras sempre reclamaram que compramos muitas commodities, sem grande valor agregado” e incentiva os dois lados a aprofundarem o diálogo, buscando caminhos de complementaridade entre as cadeias produtivas “amortizando inseguranças e flutuações de preço”.
Comentando os ataques promovidos pelo clã de Jair Bolsonaro (sem partido) à China, o ministro avalia que “os últimos dois anos mostraram maturidade nas relações sino-brasileiras, que contam com o apoio majoritário das populações de ambos os países”. Ele destacou que o diálogo da China com Brasília hoje é “direto e muito pragmático” e atribuiu ataques à desinformação.
“O nosso maior desafio segue sendo a falta de conhecimento sobre a China por parte da população brasileira. Notamos que, nas redes sociais, ainda há certo preconceito contra chineses”, lamenta.
No ano passado, a China seguiu como o maior parceiro comercial do Brasil, respondendo por 32,3% de todas as exportações brasileiras e por um superávit de US$ 33,6 bilhões. A demanda da soja também cresceu 5% no comparativo com 2019, atingindo as 60,6 milhões de toneladas, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia.
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