Líderes mundiais estão preocupados com o poder econômico e político das plataformas online
por Francisco Saboya em 05/02/21 11:24
O noticiário da semana que passou foi farto em declarações de líderes globais sobre a Internet. Autoridades aproveitaram o Fórum de Davos para alertarem sobre as ameaças à economia de mercado e à própria democracia representadas por uma Internet sem freios. A memória dos escândalos protagonizados por Facebook-Cambridge Analytica, em que o vazamento de dados de mais de 50 milhões de pessoas interferiu diretamente nos resultados de campanhas que elegeram Trump e viabilizaram o Brexit, foi reavivada pelos episódios recentes do assalto ao Capitólio por extremistas de direita americanos articulados nas redes sociais. E assim o tema voltou à agenda.
De início, o gigantismo das plataformas digitais e a concentração de poder em áreas sensíveis em uma sociedade cada vez mais dependente de fluxos de informações em rede eram vistos basicamente como aberrações de mercado. Esse fenômeno vem sendo denunciado há tempos. Microsoft envolveu-se num longo processo judicial nos já distantes anos 90 do século passado com base numa prática chamada de vaporware, que quer dizer mais ou menos o seguinte: uma empresa não pode travar o mercado, criar expectativas nos consumidores e inibir a concorrência vendendo ilusões – no caso, propagandeando futuras e, portanto, inexistentes versões aprimoradas de produtos campeões de mercado.
Mais recentemente, na Europa, Google recebeu três multas bilionárias da Comissão Europeia em função de atitudes anticompetitivas no mercado online de anúncios publicitários. A razão é a mesma de sempre: sufocar a concorrência e impedir que os consumidores usufruam dos benefícios da competição.
A componente política foi chegando aos poucos, associada à capacidade de mobilização de grandes massas em movimentos como a ‘primavera árabe’ (2010), ‘ocupe wall street’ (2011) e as grandes manifestações de rua no Brasil em 2013; além do poder devastador sobre governos nacionais de sites como o Wikileaks, que vazou, entre outros, documentos ultrassecretos americanos em 2010, ou de ações independentes como as de Edward Snowden, que em 2013 revelou documentos sobre práticas de espionagem também do governo americano. Dessa maneira, nos últimos dez anos, o poder crescente das bigtechs deixou de ser uma questão meramente econômica, a ser tratada nos tribunais, e passou a ser questionado em fóruns de natureza política.
Como se vê, o cerco está se fechando sobre elas. Por vários caminhos, o que se pretende é reduzir o poder que as grandes companhias possuem de usar a Internet para sua própria agenda de negócios às custas de e em detrimento do cidadão usuário de seus serviços. A questão agora é o que fazer.
A presidente da Comissão Europeia propõe uma aliança global entre governos para conter o poder das plataformas online. No mesmo evento, a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, retoma assunto adormecido nos últimos anos, por resistência do governo americano, da sobretaxação das empresas digitais – sugestão que já foi chamada de “Bit Tax” – em sintonia com posição antiga da França dentro da OCDE. Nos Estados Unidos, a senadora Elizabeth Warren advoga explicitamente pelo desmembramento das grandes plataformas de conteúdos e serviços online. Relatório de outubro de 2020 do Congresso Americano propõe 449 medidas para combater o monopólio das bigtechs, o que dá bem uma medida do problema.
As próprias companhias vêm sentindo o peso da cobrança social. E, coincidência ou não, o Twitter reagiu lançando na semana passada versão teste do ‘Birdwatch’, programa para combater a desinformação usando seus próprios usuários como fact-checkers, com capacidade de adicionar notas em tweets visando reduzir a disseminação de conteúdos falsos. Outra saída possível pode se dar na linha do que o criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, já vem apontando há alguns anos. Consiste basicamente em descentralizar a Web e restaurar o poder das pessoas e usuários frente ao das companhias.
O desejo de uma nova governança da internet vem ganhando força. O modelo não parece claro ainda, mas muito provavelmente será um mix de todas as ideias apontadas acima. Enquanto a reorganização dos mercados de negócios digitais não vem, conteúdos sensíveis devem ser objeto de escrutínio com nível máximo de zoom por intermédio de uma curadoria coletiva global, exercida por milhares de pessoas, escolhidas de forma randômica nas próprias redes sociais, com mandato de poucas horas de duração, ad-hoc, para opinarem em tempo real sobre conteúdos duvidosos e proporem desde advertência ou exclusão dos mesmos até a expulsão definitiva dos autores reincidentes.
Tecnologias e experiências de ação colaborativas e ágeis para validação de conteúdos já existem, como a Wikipedia (através de uma equipe interna paga, editores voluntários e guias claros e definidos do que pode ou não ser publicado); a Reddit (onde a comunidade avalia positivamente ou negativamente as contribuições de seus membros e moderadores voluntários auxiliam na remoção de conteúdos); ou o jogo Counter-Strike (onde voluntários verificam jogadas suspeitas e opinam se houve o uso de algum programa ilícito ou não). Algoritmos construídos de forma aberta e em rede, aliados a editores experientes com chancela de entidades multilaterais fariam a camada de controle, checagem e proteção contra robôs, vândalos e milicianos digitais. O principal resultado desse tipo de iniciativa seria pressionar as próprias redes sociais e bigtechs a usarem seu poder de forma mais democrática.
Apesar da opinião contrária de muitos, curadoria e censura são coisas bem distintas. A democracia tem seus mecanismos de proteção, e o controle social sobre conteúdos publicados, em especial em redes sociais devido ao seu imenso poder de reverberação, é um deles.
[Este artigo complementa análise publicada na coluna da semana passada.]
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