Na viagem entre a Polônia e a Ucrânia, histórias de quem está deixando tudo para trás para salvar a própria vida ou para defender um país que não é o seu.
Os trens que saem da Polônia para Lviv viajam com os vagões lotados de combatentes estrangeiros que se preparam para defender a Ucrânia.
Em tempos normais, poderíamos pegar um trem em Varsóvia direto para Lviv, na Ucrânia. O problema é que estamos bem longe do que poderiam ser tempos normais e quando chegamos na Polônia ainda não sabíamos, exatamente, como entraríamos na Ucrânia. Mesmo na Estação Central de Varsóvia as informações foram desencontradas.
Primeiro nos disseram que a linha até Lviv tinha sido bombardeada. Depois que existia um trem, mas apenas para refugiados saírem ou para ucranianos voltarem para casa. Por fim, pagamos 22 euros por um ticket de trem que nos levaria até Przemyśl, última cidade polonesa antes da fronteira – se você quer tentar pronunciar o nome da cidade, pode ser algo como pchmisil.
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Essa parte da viagem levou seis horas. Przemyśl tem pouco mais de 60 mil habitantes e chegamos em uma estação absolutamente lotada. Pessoas de toda a Ucrânia chegavam o tempo todo em busca de asilo e eram recebidas por uma grande estrutura montada por voluntários: a pequena estação teve espaço para a distribuição de remédios, alimentos, roupas e uma área improvisada para quem precisava dormir. No frio da primavera polonesa, quem chegava recebia um copo de café quente e um mínimo de afeto, um pouquinho de esperança para o recomeço em um lugar desconhecido.
Nessa estação descobrimos que era, sim, possível ir de trem até Lviv. O ticket é de graça para ucranianos, mas por 10 euros nós também poderíamos embarcar. Na fila para comprar a passagem conheci Elona Tereshchenko, maquiadora que vivia em Dnipro, no sudeste ucraniano, e que pretendia chegar em Ostrowiec, na Polônia, onde teria um emprego e poderia ficar por um tempo.
Elona sabia exatamente aonde queria chegar, mas não sabia como. “Não sabemos onde vamos dormir amanhã, eu me sinto vazia, sem planos, eu não sei… eu estou feliz por estar saudável e viva hoje, mas eu não sei como será amanhã”, disse. A cada minuto, centenas de pensamentos como esses se cruzavam nas plataformas, a estação estava lotada e triste.
Esperamos mais de cinco horas pelo trem, ouvimos várias histórias, entre elas, a de que Lviv estava sendo bombardeada naquele instante. A minha primeira reação foi ir pro Google, mas nenhum jornal tinha publicado a informação ainda. Tentei falar com as pessoas que eu conhecia em Lviv, mas estavam todas em abrigos antibomba, sem saber o que, exatamente, estava acontecendo. Przemyśl estava lotada, sem quartos vagos em hotéis, sem nenhum lugar pra ir. A única saída foi embarcar e confiar que, se não fosse seguro, o trem não iria.
A viagem foi tensa do início ao fim, não só pelas bombas que caíram em Lviv – depois confirmamos que o bombardeio aconteceu e que destruiu um depósito de combustível e um centro de manutenção de veículos pesados, como tanques. Foi tensa também pela quantidade de checagens de documentos e pelos “colegas” de trem. Entramos em um trem cheio de civis que, conforme os quilômetros passavam, se transformou em um trem militar.
Aos poucos as pessoas foram trocando de roupa, colocando uniformes e casacos com estampa camuflada, eram estrangeiros que iriam se juntar ao exército ucraniano. De repente o trem me pareceu um alvo perfeito… Segundo o ministro dos negócios estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kouleba, mais de 20 mil combatentes estrangeiros já se voluntariaram para lutar contra a Rússia, eles formam a Legião Internacional de Combatentes.
Enfim, passado o choque, eu e Cezar Fernandes, cinegrafista companheiro de viagem, começamos a conversar com os voluntários que estavam no mesmo vagão. Um deles, um italiano que eu tinha conhecido na fila da estação para comprar o ticket. Ele tinha contado uma história estranha, cheguei a pensar que fazia tráfico de pessoas. No fim, no mesmo vagão, ele contou que iria combater “para defender a Europa”. A motivação era a mesma de outros europeus no trem. Um espanhol disse que a Ucrânia é a porta da Europa e se Putin conquistar o território ucraniano, quem garante que ele vai parar? “Vou porque é preciso evitar que ele avance e porque não se pode impor uma vontade a um povo livre”, contou.
Logo no início da viagem, enquanto falávamos português, alguém gritou “Brasil aqui também”. Eram dois brasileiros de 22 anos, recém-saídos do serviço militar obrigatório e que, por algum motivo que nem eles souberam explicar, queriam lutar pela Ucrânia.
Nós conseguimos manter algum contato por WhatsApp. O italiano foi para Kiev, o espanhol ficou se deslocando entre cidades, trabalhando no resgate de civis. Perdemos o contato com os brasileiros. Dias depois soubemos que foram enviados para Dombass, no Leste, e que um deles estava seriamente machucado, só quando voltei para casa encontrei esse voluntário, Cristian, no Instagram. Me disse que estava em Kiev e que estava bem. Pedi para me dar detalhes sobre o que estava fazendo, se estava bem e se iria voltar para o Brasil em breve, mas ele parou de responder.
Bem, eu ainda preciso falar sobre o que aconteceu quando cruzamos a fronteira. A primeira checagem de documentos aconteceu ainda na estação, antes de embarcarmos, quando se limitaram a perguntar o que iríamos fazer na Ucrânia. Sou jornalista. Ok. Pode passar. Parecia simples demais… Já era noite quando o trem parou no meio do nada, uma escuridão completa, e todas as pessoas perderam o sinal de internet – provavelmente tinha algum bloqueador na área. Foi aí que começou uma longa checagem de documentos.
Com o trem parado na escuridão, primeiro vieram dois soldados, armados, para uma rápida entrevista com cada passageiro. Queriam saber o que iríamos fazer, em que cidade iríamos ficar, por quanto tempo. Na segunda checagem, outros dois soldados queriam documentos, no nosso caso, passaportes e credenciais de imprensa.
Na terceira checagem, duas mulheres conferiram a nacionalidade de cada passageiro e anotaram em uma planilha. Na quarta checagem, mais dois soldados passaram conferindo e carimbando os passaportes. Todo esse processo levou mais de uma hora e meia! E eu, parada no meio do nada, sem luz e sem internet, só pensava que aquele trem era um alvo perfeito…
A viagem durou muito mais do que devia, por isso chegamos em Lviv já durante o toque de recolher, durante a madrugada. O gerente do hotel nos ajudou e conseguiu um motorista credenciado para andar nesse horário para nos buscar na estação, mas muitas pessoas, sem transporte, preferiram dormir na plataforma. O trem seguiu com os combatentes sabe-se lá para onde.
Abaixo está o segundo vídeo sobre a nossa viagem, espero que vocês gostem!
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