O certo é que a Amazônia e sua conservação apresentam antigos desafios e dilemas. O emprego de novas tecnologias deveria facilitar o controle do avanço de atividades econômicas ilegais.
por Cândido Prunes em 19/06/22 12:58
Com o assassinato do indigenista Bruno e do jornalista britânico Tom, parece que repentinamente o Brasil descobriu a Amazônia e o que nela acontece. A manchete do “Uol” de hoje informa que “Garimpeiros ilegais do Brasil invadem área indígena na Amazônia venezuelana”. Como se sabe, as fronteiras brasileiras são “porosas” do Oiapoque a Chuí. Estrangeiros entram ilegalmente no Brasil e brasileiros também entram ilegalmente nos países vizinhos, quase sempre para atividades criminosas. Sobre isso há até um fato bastante curioso. Qualquer brasileiro que pegar um avião para Paris poderá entrar na França sem a necessidade de visto. Mas se esse mesmo brasileiro pegar um avião em Belém com destino a Caiena, na Guiana Francesa (território ultramarino francês, cujos habitantes são considerados franceses, votam nas eleições francesas e utilizam o euro como moeda), precisará obter um visto de entrada junto a algum consulado francês. Essa exigência é feita justamente por conta das hordas ilegais de garimpeiros e madeireiros brasileiros que costumam invadir a Guiana a partir do Amapá.
Sobre a invasão de áreas indígenas venezuelanas o problema é antigo, tem meio século e foi bem registrado pelo famoso antropólogo norte-americano Napoleon Chagnon no seu livro de memórias (sem tradução para o português) intitulado: “Nobres selvagens. Minha vida entre duas perigosas tribos – os Ianomâmis e os antropólogos”, de 2013. Chagnon passou mais de 30 anos fazendo pesquisas de antropologia cultural entre os ianomâmis venezuelanos, mas algumas vezes cruzou a fronteira para o Brasil para identificar semelhanças e diferenças entre as tribos dos dois lados da fronteira. Em 1967 ele fez a primeira dessas incursões. Vale a pena transcrever um pequeno trecho do seu livro para mostrar o que era aquela região, não muito distante do Vale do Javari, há 50 anos atrás:
“Os ianomâmis brasileiros sofriam muito mais ameaças – e mais sérias – à sua cultura e sobrevivência demográfica do que os ianomâmis venezuelanos, após, aproximadamente, 1970. No Brasil colonos, garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, militares e grileiros pareciam de prontidão para saltar sobre as fronteiras das áreas ianomâmis após meados dos anos 1960, quando a construção de uma importante rodovia através da desconhecida selva amazônica estava em processo. Na Venezuela a situação era diferente, porque os ianomâmis venezuelanos não eram ameaçados por madeireiros nem por garimpeiros. Os militares venezuelanos não estabeleceram presença constante nas terras ianomâmis até 1987, quando garimpeiros brasileiros subitamente invadiram aquelas terras do lado brasileiro e alguns deles atingiram as nascentes dos rios na região do Alto Orinoco antes de serem repelidos pelos militares venezuelanos”.
No parágrafo acima Chagnon resume a situação naquela área da Amazônia, mostrando os interesses que até hoje se articulam e destroem o meio ambiente e também os povos tradicionais e os ribeirinhos.
Mas nem mesmo aqueles que deveriam proteger os indígenas se salvam de sérias acusações sobre violação de direitos dos indígenas. O próprio Changnon foi falsamente acusado por colegas de espalhar sarampo (que é letal para os índios) durante uma pesquisa científica dos anos 60. Ele também foi repudiado por líderes religiosos salesianos da Venezuela por denunciar que essa Ordem religiosa havia distribuído armas de fogo entre os ianomâmis (que as utilizaram tanto contra inimigos como em brigas domésticas). Ao descrever o modo de vida dos ianomâmis, Chagnon mostrou o espantoso nível de violência que existe entre os diferentes grupos. Ele estimou que 35% das crianças recém nascidas são mortas pelas mães (a maioria meninas). As brigas entre homens é uma constante, especialmente para conseguir mulheres (já que a proporção em cada grupo é de 100 mulheres para cada 135 homens). É comum homens de uma tribo invadir a área de outra simplesmente para sequestrar mulheres (e se a mulher sequestrada tiver um filho no colo, este é simplesmente assassinado). Por isso é difícil achar um ianomâmi adulto que não apresente um sério defeito ou cicatriz no rosto decorrente de brigas ocorridas entre eles. A vida diária de um ianomâmi está longe de ser paradisíaca…
O certo é que a Amazônia e sua conservação apresentam antigos desafios e dilemas. O emprego de novas tecnologias deveria facilitar o controle do avanço de atividades econômicas ilegais. Os recursos financeiros existem, inclusive de fundos internacionais. Resta empregá-los de forma eficiente sabendo que fortes e antigos interesses serão contrariados e de que não há consenso sobre como proteger os indígenas.
*Cândido Prunes é advogado, pós graduado em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo e no programa executivo de Darden – Universidade de Viriginia, é autor de “Hayek no Brasil”.
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