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Orçamento sensível a gênero: já ouviu falar?

Modelo surgido nos anos 1980, na Austrália, reconheceu o orçamento como ferramenta de enfrentamento às desigualdades entre homens e mulheres

por Clara Marinho em 08/11/24 15:12

Orçamento Sensível a Gênero (OSG), modelo surgido nos anos 1980, na Austrália, visa combater as desigualdades entre homens e mulheres no âmbito orçamentário | Foto: Freepik

Escolha qualquer livro didático sobre orçamento e procure termos como equidade ou igualdade: provavelmente você terá dificuldades de encontrar nas primeiras páginas, pois esses assuntos são ignorados nas teorias orçamentárias. Normalmente, a equidade é vista como um resultado dos gastos sociais ou do crescimento econômico. A boa notícia é que ainda nos anos 1980, na Austrália, surgiu o Orçamento Sensível a Gênero (OSG), reconhecendo o orçamento como uma ferramenta para promover mudanças sociais e enfrentar as desigualdades entre homens e mulheres.

A experiência australiana introduziu três inovações: tratou as desigualdades de gênero como prioridade governamental, destinou recursos para esse objetivo e integrou a igualdade de gênero nas políticas públicas. Depois da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1995, vários países passaram a se inspirar na Austrália para construir seus próprios OSGs. Em 2016, segundo o FMI, mais de 80 países no mundo já haviam adotado esse tipo de orçamento.

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No âmbito da OCDE, há um diagnóstico de que, apesar do comprometimento dos países em ampliar a igualdade entre homens e mulheres na educação, no emprego, no empreendedorismo e na vida pública, as desigualdades de gênero aumentaram depois da pandemia. Por isso, o OSG tem sido utilizado como uma ferramenta para enfrentar esse desafio. Mas não apenas na chave de um problema: a promoção da igualdade de gênero pela via do orçamento tem sido encarada como uma forma de aumentar o crescimento, a produtividade, a competitividade e a sustentabilidade das economias.

A implementação do OSG pode ser realizada por meio de várias práticas, conforme a OCDE. Primeiro, é necessário desenvolver uma estratégia nacional de igualdade de gênero, onde os ministérios apresentam propostas orçamentárias que promovam a equidade, detalhando seu impacto nas desigualdades entre homens e mulheres. Em segundo lugar, é essencial garantir que o OSG perdure além dos ciclos políticos, através de lideranças comprometidas, legislação adequada e coleta de evidências.

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O terceiro passo envolve a incorporação do OSG na estrutura do orçamento e nas reformas orçamentárias sob a liderança da principal autoridade competente, avaliando onde há maior capacidade para avanços (orçamento por desempenho, avaliação ou revisão de despesas). Se necessário, pode-se iniciar um projeto piloto.

Em quarto lugar, deve-se integrar as ferramentas de OSG ao ciclo orçamentário. Isso inclui utilizar informações de gênero para evidenciar em quem os recursos serão investidos e qual será o impacto dessas decisões alocativas. Também é necessário visibilizar ações orçamentárias que buscam alterar as desigualdades de gênero (etiquetagem de gasto), incluir uma declaração sobre o impacto distributivo no orçamento enviado ao Legislativo (statement) e verificar se as despesas alcançam os resultados esperados.

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O quinto ponto destaca a importância de sustentar o OSG com dados desagregados (gênero, raça, renda, deficiência etc.) que permitam análises interseccionais sobre quem e em que condições utiliza os serviços públicos, possibilitando a renovação das políticas públicas. Em sexto lugar, é crucial garantir treinamento e suporte à implementação do OSG nos ministérios, além de sensibilizar de ministros, a alta burocracia, os controladores e a sociedade civil. Por fim, o OSG pode reforçar a transparência e a responsabilização, permitindo que parlamentares, auditores e cidadãos entendam os impactos do orçamento na igualdade de gênero, favorecendo decisões mais informadas.

E o Brasil, onde se encaixa nisso? Surpreendentemente, a ideia de OSG no país veio da sociedade civil. De 2005 a 2013, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) contabilizou o gasto com mulheres, divulgando os dados pelo SIGA Brasil do Senado. Mais recentemente, inspirada pelo OSG, a Bancada Feminina tem garantido desde a LDO 2021, que o Executivo publique um relatório anual sobre gastos para melhorar as condições de vida mulheres, “A Mulher no Orçamento”, já em sua terceira edição.

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O último relatório informa que o gasto exclusivo com mulheres ainda é pequeno – R$ 183 milhões em 2023 – e, mesmo com um gasto não exclusivo de R$ 202,4 bilhões, não há uma estratégia de OSG implementada. Isto é, as políticas só para as mulheres não são uma prioridade orçamentária, nem há uma reestruturação em curso das políticas públicas de diferentes Ministérios que promova a igualdade de gênero, refletida no gasto.

Tudo isso importa porque a vida das mulheres é dura e a desigualdade se perpetua diariamente. Quando chega um filho, o negócio próprio não rende ou ocorre demissão. Quando pai ou mãe adoece, é a filha que marca e acompanha a consulta. No trabalho ou negócio, elas ganham menos que os homens e enfrentam assédio moral e sexual. Contrariar um parceiro pode resultar em violência ou feminicídio. Quando uma mulher propõe uma ação de democratização da tomada de decisão, é preciso um forte apoio coletivo de outras mulheres, senão ela não será aprovada.

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Quando se fala em democratizar a classe política com mais mulheres, a resistência é forte. Mobilizar o orçamento público para melhorar a vida das mulheres tem a ver com o enfrentamento desse cotidiano, enxergando as mulheres na chave da potência, utilizando ferramentas que já estão em execução em outros lugares do mundo.

Com o envelhecimento da sociedade brasileira no horizonte, mais a intensificação das mudanças climáticas, é essencial incorporar ferramentas que mirem a redução das desigualdades entre homens e mulheres pela via do orçamento. No ajuste das contas públicas, inclusive, o OSG pode servir à identificação de políticas públicas sobrepostas e com resultados ruins, contribuindo para ampliar a efetividade do gasto.

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É por isso que é tão importante aproveitar a Agenda Transversal de Mulheres e a Nova Lei de Finanças Públicas como vias de incorporação do OSG no Brasil. Do contrário, em breve, mesmo em períodos de crescimento econômico, veremos mulheres escolarizadas sobrecarregadas com o cuidado dos mais velhos, segurando os escombros dos eventos climáticos extremos.

Com baixos salários e ameaçadas pela violência, elas encontrarão dificuldade para ocupar espaços nas empresas, na burocracia e na classe política para expressar suas necessidades – o que não é exatamente tão diferente do que já acontece hoje. Ocorre que em política pública, só é possível alcançar resultados diferentes com novos passos. Estamos prontos para o início de uma nova caminhada?

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