Disputa política e rejeição ao imunizante se somam à ausência de planejamento em relação à pandemia
por Rodrigo Borges Delfim em 12/12/20 18:49
Enquanto alguns países mundo afora já iniciam o processo de imunização de suas populações contra a Covid-19, a questão da vacina no Brasil virou pivô de uma grande disputa política e ideológica.
Ainda não se sabe ao certo quando e como a vacinação terá início, já que não há um imunizante registrado e licenciado no país até o momento. Ao mesmo tempo, além dos embates políticos, começa a ganhar terreno um sentimento de desconfiança em relação à vacinação em si, movido basicamente por questões ideológicas.
A dúvida persiste mesmo após a Advocacia-Geral da União (AGU) ter entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) neste sábado (12) um plano nacional de imunização contra a Covid-19. Embora detalhe cronogramas de vacinação, o programa não estipula uma data para seu início.
O plano estima um total de 108 milhões de doses necessárias para vacinação prioritária de trabalhadores da saúde e idosos, entre outros. A quantidade é suficiente para imunizar 51 milhões de brasileiros, menos de um quarto da população, hoje em 212 milhões de habitantes —cada pessoa precisa tomar duas doses da vacina.
O governo reconhece no documento a necessidade de que ao menos 70% da população se imunize para barrar o vírus — o equivalente a 148 milhões de pessoas.
O plano do governo chega ao final de uma semana que foi especialmente marcada por brigas e informações desencontradas quanto ao enfrentamento da pandemia.
Os dois principais nomes envolvidos nessa disputa são o do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e do governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Esse embate é visto ainda como parte do jogo visando a eleição presidencial de 2022 —ambos são considerados possíveis candidatos e tentam capitalizar em cima das respostas à pandemia.
Na segunda-feira (7), Doria anunciou que iniciaria a imunização no estado em 25 de janeiro, com a Coronavac. A vacina é desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac, que tem como parceiro o Instituto Butantan, que vai produzir as doses.
Doria acusa ainda a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), subordinada ao Ministério da Saúde, de atrasar o processo de autorização da Coronavac no Brasil. Ela consta como uma das 13 candidatas a serem usadas no país, de acordo com o plano entregue ao STF.
Ao contrário de outros países, que fizeram acordos com mais de um imunizante, o Brasil colocou todas as suas fichas inicialmente no desenvolvido pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca. No entanto, ela apresentou problemas durante testes e teve seu cronograma de desenvolvimento retardado.
Esse atraso, aliado à disputa política em torno da vacina, tem pressionado o Ministério da Saúde a buscar acordos para outros imunizantes. E a estratégia de focar em um único acordo é alvo de críticas da área médica e de gestão.
“Todas as vacinas, sem exceção, precisam ser compradas. E além disso, precisamos ver no ano que vem se vamos precisar vacinar toda a população de novo ou só determinados grupos”, sintetiza Marcio Duailibi, doutor em Saúde Pública pela Fiocruz.
Para a professora Deisy Ventura, pesquisadora da faculdade de Saúde Pública da USP e especialista em Ética e Saúde Global, o embate político em torno da vacina —incluindo o anúncio de supostas datas de início de imunização — serve apenas a anseios populistas ainda e prejudica ações efetivas de combate à pandemia via imunização.
“O anúncio de datas tem o efeito negativo de gerar expectativas e, ao frustrá-las, desacreditar as autoridades sanitárias quando o calendário não consegue ser cumprido”, ressalta a pesquisadora.
Ao mesmo tempo, a polarização em torno da vacina é cada vez mais sentida junto à população.
Uma pesquisa divulgada neste sábado (12) pelo Instituto Datafolha aponta que 22% dos entrevistados disseram que não pretendem se vacinar contra a Covid-19, contra 9% que manifestavam tal posição em agosto.
O número dos que pretendem participar da imunização ainda é franca maioria (73%), mas já reflete uma desconfiança crescente em torno das opções que se apresentam.
A mesma pesquisa Datafolha indica ainda que uma vacina desenvolvida pela China é rejeitada por 50% dos entrevistados, enquanto imunizantes elaborados por Estados Unidos, Inglaterra e Rússia são negados por 23%, 26% e 36%, respectivamente.
Essa desconfiança encontra eco em notícias falsas que circulam pelas redes sociais, como a de que vacinas contra a Covid-19 teriam o poder de alterar o DNA de quem recebesse as doses.
“Vemos familiares e vizinhos brigando entre si para defender, por exemplo, o uso precoce de cloroquina para Covid-19, quando na verdade nem o governo federal acredita nisto. Simplesmente espalhou esta mentira para que os trabalhadores tivessem coragem de voltar ao trabalho com base na crença de que existiria um tratamento”, critica Ventura.
A imunização da população brasileira ainda pode esbarrar em um outro obstáculo além da disputa política: uma possível falta de seringas e agulhas para aplicação das vacinas.
Fabricantes alertam que precisam de pelo menos 60 dias de antecedência para atender grandes demandas como as que deveriam vir de estados e do próprio governo federal. Até o momento não há notícia de acordo do Ministério da Saúde para a compra desse material.
“A grande pergunta que eu faço: quantas doses de vacina estarão disponíveis? Até agora eu não sei”, questionou Walban Souza, diretor de Assuntos Corporativos da BD, um dos três fabricantes de seringas e agulhas do país, em reportagem publicada na última quarta-feira (9) no MyNews.
A falta de planejamento pode cobrar um preço alto. Sem um pedido centralizado, o Brasil pode viver uma corrida generalizada por seringas e ter estados com estoque e outros sem acesso ao material.
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