Senador pró-garimpo foi a Roraima duas vezes em abril e agora vai a cidade do Mato Grosso, onde não há crise yanomami
por Agência Pública, Rubens Valente em 10/05/23 12:55
Criada à revelia e sob protesto das organizações indígenas, a comissão temporária externa do Senado voltada para a crise humanitária Yanomami já gastou R$ 690 mil em duas viagens realizadas num espaço de duas semanas em abril. A maior parte dos valores (84%) foi paga pelo Senado ao Ministério da Defesa, que cobrou deslocamentos em aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira) e até um almoço servido à comitiva no pelotão do Exército de Surucucu.
Na última quinta-feira (4), a comissão decidiu ir além. Por maioria de votos, os senadores presentes à sessão acolheram um requerimento apresentado pelo presidente do colegiado, Chico Rodrigues (PSB-RR), a fim de realizar uma viagem “na região de Peixoto de Azevedo, Mato Grosso, com o objetivo de avaliar os processos da atividade garimpeira na região, bem como possíveis soluções alternativas e sustentáveis para os garimpeiros”.
Peixoto de Azevedo fica a 1.581 km em linha reta de Boa Vista (RR), capital do Estado no qual se localiza a Terra Indígena Yanomami. A comissão, porém, foi instalada no Senado com o objetivo de acompanhar “a situação dos Yanomami e a saída dos garimpeiros de suas terras”. O senador foi indagado pela Agência Pública na última quinta-feira, por meio de sua assessoria, sobre os gastos da comissão e a necessidade da viagem a Mato Grosso, mas não houve resposta até o fechamento deste texto.
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Os custos das duas viagens foram obtidos pela Pública junto ao Senado e com base num documento de cobrança encaminhado à comissão pelo Ministério da Defesa. Assinado pelo comandante do Exército, o general Tomás Paiva, o ofício diz que a viagem ocorrida entre os dias 12 e 14 de abril custou R$ 358 mil e a de 28 de abril e o almoço, R$ 225 mil. “Solicito as gestões necessárias para a descentralização do valor total de R$ 583 mil, a título de ressarcimento a este Ministério”, escreveu o general.
Em resposta a um pedido de informações, a assessoria do Senado informou à Pública que foram gastos, nas duas viagens, R$ 64 mil com passagens aéreas e R$ 42,2 mil com diárias de servidores do Senado.
O segundo deslocamento foi cumprido por apenas um dos parlamentares da comissão: o próprio presidente, Chico Rodrigues — técnicos do Senado e do Ministério dos Povos Indígenas integraram a comitiva. A quase nula participação dos parlamentares evidencia o descompasso dentro da comissão. Senadores da base do governo, como Eliziane Gama (PSD-MA), Humberto Costa (PT-PE) e Leila Barros (PDT-DF), não participaram das duas viagens. No primeiro deslocamento, ocorrido entre os dias 12 e 14 de abril, participaram apenas Rodrigues, “Dr. Hiran” e Mecias de Jesus (Republicanos-RR), todos parlamentares de Roraima que já deram declarações favoráveis aos garimpeiros e à mineração.
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
A segunda viagem só ocorreu após os senadores da base governista terem deixado de participar da primeira, tendo em vista manifestações contrárias de indígenas e do Ministério da Saúde. Em 12 de abril, um dia antes do embarque dos parlamentares de oposição ao governo Lula de Brasília para Boa Vista, a Urihi Associação Yanomami dirigiu um ofício em caráter de urgência para o senador Chico Rodrigues. A carta alertava sobre “um surto de malária” na região de Surucucu, onde “alguns profissionais de saúde e indígenas foram acometidos”. Era o destino inicial da viagem programada pelo comando da Comissão.
“Neste momento a necessidade é de ampliar esforços com o maior número de profissionais para resolutividade da situação exposta, e que é imprescindível evitar a entrada de equipes que não sejam da saúde para o território, até que se estabilize a situação. Dessa forma, reforçamos que a visita não seja realizada neste momento, em razão da situação de vulnerabilidade dos povos Yanomami da região do Surucucu”, escreveu o presidente da Urihi, Junior Hekurari Yanomami, autor de inúmeras denúncias durante o governo de Jair Bolsonaro que alertavam sobre o genocídio em curso no território indígena.
No dia 11, a chefia de gabinete da presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana, já havia feito um alerta semelhante. A Funai anexou uma mensagem eletrônica recebida do COE (Centro de operações de Emergência) Yanomami, montado em janeiro pelo Ministério da Saúde para enfrentar a crise humanitária. O documento confirmava um “surto de malária no território Yanomami” e falou da “necessidade de ampliar nossos esforços para encaminharmos o maior número de profissionais ao território”. O COE informou que “não aprova essa solicitação” da Comissão do Senado e que “sugerimos os dias 20 a 22 de abril para entrada dos mesmos”, ou seja, os parlamentares.
O COE mencionou de novo uma “dificuldade” nas ações de logística e lembrou que atuava para “evitar o envio de equipes que não sejam de saúde para o território”. Em outras palavras, para o COE, se os senadores queriam de fato contribuir para debelar a crise Yanomami, a melhor decisão naquele momento agudo era não ingressar na terra indígena nem mobilizar meios aéreos que deveriam ser usados pelo pessoal da Saúde. Os senadores Eliziane, Costa e Barros, além de Zenaide Maia (PSD-RN), pediram que a comissão fizesse alterações na viagem e que evitasse entrar na terra indígena.
Mas Chico Rodrigues manteve o deslocamento, com apoio do relator, “Dr. Hiran”. Diferentemente do programado, porém, a comissão não fez visitas a aldeias dentro da terra indígena. Permaneceu em Boa Vista (RR), onde visitou hospitais e a casa de saúde indígena e promoveu reuniões com representantes de órgãos públicos, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.
Além das viagens, a comissão passa a ser usada para pressionar politicamente autoridades do governo Lula. Só após a posse do novo governo, em janeiro, é que vieram a público as imagens que confirmaram desnutrição grave e causas evitáveis como a diarreia entre crianças e adultos Yanomami, descortinando a tragédia sanitária que se desenrolou ao longo do governo de Jair Bolsonaro em grande parte motivada pela invasão garimpeira. Para o senador Hiran, contudo, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, é que deve ser “convocada” pela comissão para “prestar esclarecimentos” sobre supostas “acusações públicas direcionadas à população de Roraima e ao governador do Estado”, Antonio Denarium, um apoiador declarado de Bolsonaro. Nenhuma alta autoridade do governo de Jair Bolsonaro apareceu para falar sobre a crise Yanomami sob pressão da Comissão. O ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, por exemplo, foi convidado, mas deixou de comparecer.
Foto:Jefferson Rudy/Agência SenadoJefferson Rudy/Agência Senado
O senador usa como argumento para a “convocação” uma entrevista coletiva concedida por Sonia Guajajara em Roraima em 1º de maio. Ele escreveu no requerimento que Sonia afirmou que Roraima “tem como principal atividade econômica o garimpo ilegal, e que o Governo Estadual insiste em apoiar a permanência da extração mineral ilícita em terras indígenas”.
A fala de Sonia foi diferente. Em 1º de maio, ela foi indagada por jornalistas sobre leis aprovadas pró-garimpo por Denarium, conforme amplamente noticiado pela imprensa. Segundo a transcrição feita pelo jornal Valor Econômico, Sonia respondeu: “O Estado não pode insistir em permanecer, apoiar ou incentivar a permanência desses garimpeiros no território Yanomami. O Estado não pode ter como principal atividade econômica uma atividade ilícita”. Ou seja, ela disse o que o Estado não poderia fazer.
A ministra teria dito ainda, segundo a transcrição, que “é isso que Roraima precisa entender, que o governador [Antonio Denarium] precisa entender. Ele não pode ficar fomentando a atividade ilícita porque alguém vai pagar por isso. Se ainda há uma conivência de tentar legalizar, ele está incentivando. Esses garimpeiros acreditam que o governador vai poder permitir a permanência deles lá e eles não vão porque tem a Constituição que rege. Estamos aqui com respaldo legal, em nenhum território indígena há permissão para se explorar minério”.
Assista ao Almoço do MyNews com participação do autor da reportagem, Rubens Valente.
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