Para especialistas, uso da cota parlamentar pode configurar “improbidade administrativa”
por Laura Scofield - Agência Pública em 28/07/22 07:01
Levantamento inédito da Agência Pública mostra que parlamentares que apoiam o governo e atuam como influenciadores digitais bolsonaristas utilizaram a cota parlamentar — dinheiro público reservado aos gastos do gabinete — para comparecer a cidades onde ocorreram congressos conservadores. Segundo regulamento da Câmara, não há problemas em parlamentares participarem em congressos, mas eles teriam que ser realizados por “instituição especializada” e não podem ferir a lei eleitoral.
O número de Congressos Conservadores dobrou entre o ano passado e 2022, ano eleitoral.
Segundo dados do Portal da Transparência da Câmara, os deputados federais Daniel Silveira (PL-RJ), Alê Silva (PL-MG) e Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) repassaram aos seus gabinetes gastos feitos com passagens, combustível e hospedagens nas datas e cidades onde ocorreriam eventos. Juntos, gastaram mais de R$ 11 mil.
Daniel Silveira, que é do Rio, gastou ao menos R$ 3.403,48 para comparecer a reuniões conservadoras em Patos de Minas (MG) e Belém (PA), antes de ser proibido de viajar pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que o condenou por incitar violência contra os ministros.
Já a deputada Alê Silva bancou com dinheiro público sua ida a eventos conservadores em Patos de Minas (MG) e Belo Horizonte (MG), ambos em sua base eleitoral. A deputada gastou ao menos R$ 6.642,98 para ir aos congressos.
Os dados de transparência do gabinete do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) também indicam que ele compareceu ao congresso em Belo Horizonte utilizando cota parlamentar. No dia 17 de novembro de 2021, três dias antes do evento na capital mineira, foi emitida uma passagem aérea em seu nome entre os aeroportos de Confins, em BH, e Congonhas, em São Paulo. O gabinete também declarou ter pagado o transporte para os aeroportos nesta mesma data com cota parlamentar. No total, o deputado gastou ao menos R$ 1.144,77 para ir ao evento.
O deputado federal Filipe Barros (PL-PR) comprou passagens aéreas por R$874,04 para a cidade do Rio de Janeiro, próxima de onde ocorreria o Congresso Politicamente Incorreto dias depois.
A deputada federal por São Paulo, Carla Zambelli, comprou R$ 110,00 de combustível na cidade onde ocorria o 1º Congresso de Desenvolvimento Alta Mogiana em Franca/SP. No dia anterior também havia abastecido o carro com etanol por R$ 124,00 na cidade de Ribeirão Preto, a 90 km de Franca. O evento foi organizado pelo grupo Conservadores de Alta Mogiana, convidou grandes nomes bolsonaristas e teve tom de campanha para Tarcísio de Freitas, a quem Zambelli pediu votos.
Para a advogada eleitoral Ana Carolina Clève, o gasto de dinheiro público para comparecer a congressos conservadores poderia configurar “improbidade administrativa”. “Me parece que há um desvio de finalidade. Eles estão usando dinheiro público para fins pessoais”.
Em retorno à Pública, Zambelli disse que não utiliza verba pública para comparecer a congressos conservadores, mas para ouvir os moradores.
“A razão da visita ao município foi escutar os moradores, o Prefeito, que pode confirmar essa conversa, e o Hospital do Câncer e Santa Casa. Todos os meus gastos com cota parlamentar são destinados a atividades diretamente vinculadas ao exercício da minha atividade enquanto representante do povo na Câmara dos Deputados”. Confira a íntegra do retorno da deputada.
Já o deputado Daniel Silveira afirmou que “não houve nenhuma verba pública empenhada em Congressos Conservadores”, e que as despesas são custeadas pelos organizadores dos eventos. Ele também ameaçou processar a reportagem. A Pública pediu que o deputado explicasse o motivo dos gastos do seu gabinete nas cidades dos congressos, mas ele não respondeu.
Após a publicação desta reportagem, o deputado Filipe Barros (PL-PR) enviou uma nota de esclarecimento na qual afirma que “em nenhuma oportunidade o Parlamentar utilizou erroneamente de passagens aéreas para qualquer evento que não fosse do interesse ou da forma de atuação que o identifica e o notabiliza”. Ele afirma ainda que o Congresso Politicamente Incorreto, realizado em dezembro de 2021, não tem “nenhuma correlação” com a campanha eleitoral do ano de 2022. “Relembre-se que a atividade político-parlamentar pressupõe esforços para a ‘doutrinação e educação política’, nos termos da lei no. 9.096/95”. Por fim, a nota afirma que o parlamentar segue as leis “bem como o dinheiro do contribuinte”. Leia a íntegra da resposta aqui.
O advogado de direito administrativo Álvaro Palma de Jorge explica que o desvio de finalidade e eventual improbidade administrativa no uso da verba pode acontecer caso os congressos atuem como “uma espécie de disfarce para um ato de campanha”. “O problema é se na verdade isso não for um congresso, e sim um evento político”, diz.
Silvana Batini, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-Procuradora Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, ressalta que prerrogativas parlamentares como verba para viagens, combustível e imprimir material “não podem ser usadas em benefício de campanha eleitoral qualquer que seja”, pois a intenção da lei eleitoral é evitar que os pré-candidatos e políticos que já estão na máquina pública empreguem suas “vantagens naturais” para quebrar “a isonomia do pleito”, o que poderia configurar irregularidades eleitorais de natureza grave.
Desde o início do governo Bolsonaro, ocorreram ao menos 45 primeiros congressos conservadores – 22 deles apenas neste ano. Durante as palestras, é comum haver pedidos de votos para Bolsonaro e candidatos aliados a deputado federal.
Às vésperas do 1º Congresso Conservador do Pará, o gabinete do deputado federal Daniel Silveira emitiu passagens aéreas de ida e volta para Belém no valor de R$ 2.733,10.
Na cidade, Silveira falou em painel chamado “Nossa Liberdade é Inegociável”. No mesmo evento também palestrou Marcos Pollon, fundador do Pró-Armas. Allan dos Santos e a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, compareceram por videochamada.
Silveira criticou a esquerda e reforçou a campanha de Jair Bolsonaro: “Faço aqui o apelo, pelo amor de Deus, ele [presidente Jair Bolsonaro] é a única alternativa desse país, a única”.
De acordo com o Portal da Transparência da Câmara, o deputado também abasteceu o carro em Patos de Minas e custeou as hospedagens em nome dele e de outra pessoa nos dias do 1º Congresso Conservador do Alto Paranaíba, Noroeste e Triângulo Mineiro, Marcha pela Família, que ocorreu na cidade em 5 e 6 de março deste ano.
Em sua palestra, Daniel Silveira confirmou que viajou de carro e abasteceu em postos no caminho. Também lembrou uma conversa com Bolsonaro e se referiu às eleições: “O presidente Bolsonaro [me] falou [que] ‘as eleições de 2022 são cruciais para o Brasil, elas vão definir os próximos 30 anos de política’”.
A deputada Alê Silva (PL-MG) bancou com dinheiro público viagens a dois congressos em Minas Gerais, sua base eleitoral.
Para o 1º Congresso Nação Conservadora – 2021, em 19 de novembro de 2021 em Belo Horizonte, o gabinete bancou três hospedagens e alugou um carro por quatro dias. No evento, ela falou sobre “furar a bolha, unir a direita e buscar novos adeptos para o conservadorismo”, de acordo com sua assessoria.
Em Patos de Minas, Alê Silva disse que, no início de seu mandato, evitava gastar o dinheiro da cota parlamentar: “Eu cheguei lá [na Câmara] com essa ideia, ‘vou economizar, não vou gastar. Ir lá pra Patos de Minas gastar um tanque de combustível? Na-na-ni-na-não’”. Entretanto, afirmou ter mudado de ideia e hoje, “dentro da transparência que a lei exige, [uso] todo o dinheiro que vocês cidadãos colocam à minha disposição para eu investir no meu mandato”. “Nós conservadores às vezes temos um probleminha, que a gente não quer gastar igual a esquerda gasta, aí a gente só toma cacetada”, acrescentou. Embora se diga a favor de reduzir a cota parlamentar, ela afirma que, enquanto isso não acontece, “estamos em guerra” e “temos que usar todas as armas lícitas que estão disponíveis para a gente”.
No evento, a deputada confirmou que levou três assessores à cidade para o congresso. “Boto eles pra trabalhar porque eles ganham por isso. Boto eles pra trabalhar sim! Tem três comigo aqui hoje”, disse.
O gabinete pagou por três hospedagens de um dia em Belo Horizonte — uma para ela e outras duas para assessoras — e no dia seguinte custeou a estadia de três pessoas em Patos de Minas durante o congresso. Os registros mostram que a deputada também abasteceu o carro.
Em novembro de 2021, o deputado Filipe Barros, do Paraná, comprou um voo de seu estado até o Aeroporto de Santos Dumont, no Rio de Janeiro. No mês seguinte, ele palestrou no Congresso Politicamente Incorreto, em Niterói.
Já a deputada federal Carla Zambelli usou dinheiro público para abastecer o carro em Franca, São Paulo, onde ocorreu o 1º Congresso de Desenvolvimento Alta Mogiana em 12 de fevereiro deste ano. O evento também contou com palestras de Eduardo Bolsonaro, do ex-ministro Tarcísio de Freitas, pré-candidato ao governo do estado, Gustavo Gayer, Fernando Lisboa, Bárbara Zambaldi, do canal Te Atualizei e da médica Nise Yamaguchi. O presidente Jair Bolsonaro também discursou online no evento.
Ela falou ao lado do ex-ministro Tarcísio de Freitas e se referiu ao pré-candidato ao governo de São Paulo como “a esperança que o povo paulista tem de mudar esse estado”. Também pediu que os presentes compartilhassem o evento. “A gente não vai poder só eleger o Tarcísio [como] governador, a gente vai ter que eleger vários deputados estaduais para cuidar desse homem lá dentro”, finalizou Zambelli.
No dia seguinte, Zambelli se hospedou com mais uma pessoa na cidade de Mogi Guaçu, a 255 quilômetros do congresso, onde participou de evento com políticos da região.
A reportagem contactou os deputados Alê Silva e Luiz Philippe de Orleans e Bragança, mas não obteve retorno.
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