Uma das principais polêmicas é mandato fixo para comando de Polícia Civil, PMs e Bombeiros militares
por Alexandre Saconi em 26/02/21 14:04
Um debate que se estende há mais de uma década vem tomando rumo para finalmente ser colocado em pauta no Congresso. As propostas de leis gerais das polícias militar e civil ganharam campo e corpo nos últimos anos favorecidas pela atuação de deputados da Frente Parlamentar de Segurança Pública.
Ambas iniciativas vêm contando com diálogo recente nas associações de classe de ambas as categorias, mas datam de 2001 (PL 4363/2001 – Lei Geral da Polícia Militar) e de 2007 (PL 1949/2007 – Lei Geral da Polícia Civil). As duas são proposituras do Poder Executivo à época.
A presença do campo bolsonarista no Congresso, fortemente ligado à temática da segurança pública, permitiu que as propostas fossem agilizadas internamente para serem levadas ao debate. Veja a seguir os principais pontos dos projetos.
Para associações de policiais que debatem o tema, o que está havendo é, em grande parte, uma sistematização de práticas que já ocorrem cotidianamente, mas que estariam fragmentadas. “Muita coisa já existe, estamos apenas positivando o que é esparso entre as corporações”, diz Marlon Jorge Teza, coronel da Polícia Militar de Santa Catarina e Presidente da Feneme (Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais).
O Decreto-Lei 667/1969 é que ainda organiza as atividades das Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares das unidades da federação. Desde então, apenas leis estaduais e poucas outras regulamentações tentaram organizar a atividade policial pelo país.
Gustavo Mesquita Galvão Bueno, presidente da Adpesp (Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo) e vice-presidende da ADPJ (Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária), destaca que os projetos de lei ainda serão alvo de muitas conversas antes de serem levados para a aprovação definitiva do Congresso. “O projeto [da Lei Geral da Polícia Civil] vem sendo construído pelo Executivo na Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública) desde 2007, por meio do diálogo de diversas entidades representativas da Polícia Civil”, destaca Bueno.
No âmbito da Polícia Civil, o Concpc (Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil) possui uma proposta própria para a Lei Geral, que foi a analisada nessa reportagem. Todos esses materiais deverão ser apresentados nos próximos meses aos respectivos deputados federais relatores para serem debatidos no Congresso.
Uma das principais e mais polêmicas demandas das categorias é o mandato fixo de dois anos para o delegado-geral da Polícia Civil e para os comandantes-gerais das PMs e dos Bombeiros militares. Tal medida é uma das que vêm sendo atribuídas como uma tentativa de redução do poder dos governadores sobre as polícias, que hoje têm a liberdade de manter os nomes que indicarem pelo tempo que quiserem nos cargos.
Os representantes das categorias defendem que essa medida diminuiria a interferência e perseguição política sobre as polícias, sem afetar a hierarquia. “[A troca do delegado-geral apenas ocorre] se houver a prática de algum ato que represente essa necessidade, mas precisaria de manifestação do poder Legislativo. Essa é uma maneira de mitigar as ingerências do Executivo sobre a polícia que investiga, e que é de Estado, não de governo”, diz Bueno, da Adpesp.
O delegado ainda lembra que a instituição se manteria sob o guarda-chuva do governador, que continuaria com o controle das polícias e dos bombeiros. “Um governador que quer diminuir o poder dessa polícia, como aqui em São Paulo, pode fechar a torneira para a entidade, diminuindo os recursos financeiros. Assim, essas medidas mitigam o excesso de ingerência, mas não a estancam definitivamente”, destaca.
Um exemplo trazido sobre necessidade de estabilidade no cargo de chefia da polícia é a instituição ter maior liberdade para atuar em interesses que possam contrariar a classe política. “Se um delegado-geral de polícia quiser criar uma força-tarefa para investigar corrupção, o governador pode tentar tirá-lo se acreditar que pode ser afetado por isso. Com o mandato fixo, essa chance diminui fortemente”, finaliza o presidente da Adpesp.
Nos projetos, as carreiras e os cargos atuais são mantidos, mas são estabelecidas regras claras e unificadas para a promoção e ascensão dos policiais em todo o país. No caso das polícias e dos corpos bombeiros militares, é prevista a criação dos cargos de generais, divididos em tenente-general, major-general e brigadeiro-general.
Atualmente, o cargo de comandante geral das PMs e dos bombeiros é ocupado por coronéis. A proposta legislativa visa a criação desses cargos de general para estabelecer uma estrutura paralela com a das Forças Armadas.
Teza explica que o que motiva a criação desse cargo é a necessidade de simetria entre os comandos das polícias militares e a Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão ligado ao Exército que é comandado por um general. “Todas as instituições policiais militares do mundo têm o cargo de general”, destaca.
Sobre o impacto financeiro da medida, com a criação de novos cargos, o coronel nega que isso terá efeito. “General seria um cargo comissionado para que pelo menos um dos coronéis fosse nomeado general durante seu comando da polícia. Quando reformado, volta ao posto de coronel. Não haveria alteração salarial”, diz o coronel.
Os projetos analisados também preveem a exigência de nível superior para ingresso em todos os cargos. Para entrar no quadro de oficiais das polícias e bombeiros militares, que é um concurso diferente do de soldados, seria necessária a formação específica em Direito.
Essa medida encontra resistência dentro das próprias entidades que debatem o projeto, mas tende a ser aceita com um prazo de cinco anos para adequação de cada corporação. Para o presidente da Feneme, os efeitos dessa exigência serão sentidos de maneira positiva com o tempo, aumentando a sensação de pertencimento dos policiais à corporação e melhorando os salários com o decorrer dos anos para atrair pessoas com nível superior.
Outro motivo que gera a resistência é a possível quebra hierárquica que pessoas mais bem-preparadas e com mais vivência poderia causar. “Muitos questionam: ‘Se colocar gente com nível superior a disciplina vai diminuir porque vão questionar mais’. Mas veja o exemplo em Santa Catarina, se isso ocorreu por lá. Não ocorreu”, diz Teza sobre a corporação catarinense.
Cerca de 80% dos policiais desse estado da região sul tem nível superior, segundo a Feneme, e essa exigência ocorre desde 2007. “A remuneração é um dos atrativos para levar graduados às forças públicas, onde um soldado de 3ª classe (início da carreira) recebe um salário-base de R$ 4.581,90”, conclui Teza.
Para o sociólogo Luis Flavio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública (Cepesp/PUC Minas) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ambos os projetos são fortemente corporativistas e deixam de lado um projeto de polícia voltado para a sociedade. “O que define os dois projetos é o excesso de corporativismo. O que houve ali foi um arranjo onde delegados, investigadores, escrivães, oficiais, praças etc. se articularam e chegaram a um acordo sobre o tipo de polícia que eles querem para eles mesmos, e não para a sociedade”, diz o pesquisador.
Ainda segundo Sapori, quatro aspectos definem as propostas em debate:
1) Excesso de autonomia: os projetos das polícias civil e militar tendem a diminuir o controle da sociedade e dos governos sobre elas. As polícias são muito vulneráveis ao clientelismo político, e esse diagnóstico é correto em certo ponto. Mas, em função disso, estão propondo uma autonomia plena, até mesmo financeira, como consta no projeto da PM. Ou seja, para resolver um problema, estão criando outro problema, propondo uma “superpolícia” e, em particular a Polícia Militar, propõe-se uma instituição completamente autônoma como é o Ministério Público, um quinto poder de fato.
2) Militarização às avessas: sobre as polícias militares, a tentativa de criação de cargos de general e toda a simetria com o Exército recai sobre um processo de militarização que vai contra a corrente do que se pensa hoje para essas instituições. Cria-se mais cargos, como o de general, mas, em algumas localidades do país, o nível hierárquico está sendo reduzido justamente para tornar a polícia mais eficiente e menos burocrática.
3) Reforça o viés jurídico da PM: exigir o curso de direito para os cargos de oficiais é meramente corporativista. Esses integrantes tentam se enquadrar naquelas que são conhecidas como carreiras jurídicas do estado (como promotores, juízes e delegados). Quanto mais diversidade no oficialato, melhor para a polícia, que tem de entender as diversas formas como a sociedade funciona.
4) Poder excessivo das PMs: o projeto amplia em demasia o leque de atribuições da Polícia Militar, como o poder de fiscalizar as empresas de segurança privada, tornando-a muito poderosa em um cenário onde deveria haver maior contenção dessa força.
“O projeto de lei substitutivo da PM, por exemplo, tem propostas que não se adequam às mudanças institucionais pelas quais a polícia passou no Brasil nas últimas décadas. […] Precisamos criar mecanismos de controle das polícias, e não fortalecer seus corporativismos”, encerra o pesquisador.
As leis gerais ainda versam sobre os seguintes temas, entre outros:
— Padronização dos uniformes: em todo o país, a PM teria uma mesma vestimenta, mantendo-se os uniformes históricos de acordo com a tradição de cada corporação.
— Viaturas com a mesma identidade visual: o objetivo é que, em qualquer unidade da federação o cidadão possa identificar qual é a viatura das forças policiais por sua pintura. O modelo e os equipamentos continuam sendo definidos pelos governos estaduais e distrital.
— As polícias militares passariam a ser responsáveis por credenciar e fiscalizar empresas de segurança privada, competência até então da Polícia Federal e que passaria a ser feita em conjunto pelos órgãos.
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