Só retórica não absolve Exército dos desvios de Bolsonaro POLÍTICA

Só retórica não absolve Exército dos desvios de Bolsonaro


Chavão em notas que tentam dissociar corporações do mau comportamento de seus integrantes, o clássico “não compactuamos com eventuais desvios de conduta” tem sido recorrente em manifestações das Forças Armadas. Notadamente do Exército.

O problema é que os desvios de conduta são cada vez menos “eventuais” e as notas se sucedem no mesmo diapasão. Já há elementos suficientes para constatar criminosos fardados com as tradicionais cores verde-oliva.

O mais notório deles, tem o tenente-coronel Mauro Cid, fiel Ajudante de Ordens do ex-presidente Bolsonaro, que compareceu à CPMI do Golpe impecavelmente fardado, com aval do Exército. E, a partir dele, descobre-se um novelo sem fim, a desafiar o compromisso constitucional e os critérios de promoção e nomeações de altas patentes em um governo que se pretendia redentor.

O desenho cívico que orientava o marketing da volta dos militares ao poder pelo voto virou um garrancho sem precedentes. Em nome do mofado combate ao comunismo, a caserna escancarou uma face ideológica que em nada deve aos extremos que condena no espectro político.

A nódoa alcança a instituição, em que pesem os esforços de retórica para manter-se dissociada dos “eventuais” desvios de conduta. O escândalo comprovado do comércio de patrimônio nacional, entre outros, não envolve as tropas, mas oficiais de cúpula, de altas e diversas patentes, o mais recente um ex-integrante do alto-comando.

A aventura de enredar-se com um capitão reformado para reescrever a história de 64 tem seu gene no ex-comandante da Força, general Villas Boas, de biografia e ideário cultuados nas Três Armas. Inconformado com a permanência do que chama de a versão da esquerda para o golpe de 64, tornou-se obsessivo em demonstrar que era uma versão fake.

Arrastou consigo a instituição ao sequer hesitar em abraçar-se àquele que afrontou fundamentos básicos da vida militar, como a hierarquia, a disciplina e o compromisso de não atentar contra os seus. A mesma causa que usou como pretexto para sua subversão quando nos quartéis, Bolsonaro aplicou para cooptar biografias militares até aqui preservadas: os salários.

Foi um derrame de dinheiro, uma farta distribuição de remunerações que chegou a garantir ganhos de R$ 100 mil a oficiais de alta patente. Ninguém poderia imaginar que tal estratégia chegasse ao ponto de transformar oficiais em camelôs. Pior, sob o messiânico slogan de Deus, Pátria e Família.

Dinheiro fácil na veia vicia como qualquer droga, como ficou demonstrado no descaminho pelo qual enveredou o general Mauro César Lourena Cid, contemplado com um cargo civil na Apex, em Miami, onde a família fez fortuna.

Não bastava, e o general de biografia aparentemente irretocável, ex-integrante do Alto Comando, emplacou o filho na antessala do presidente da República de quem fora colega na meritória e louvada Academia Militar de Agulhas Negras, polo qualificado da formação da elite militar brasileira. Sabe-se agora com qual finalidade.

E onde ficou o ideário de 64, de pretensa reedição, é o que se deve perguntar agora o velho general que deu a senha com um twitter para uma campanha implacável contra o Supremo Tribunal Federal, símbolo maior do Poder Judiciário. Na prática, os militares confirmaram seus críticos de 64 ao tentarem governar com sua própria Constituição.

O escândalo em curso ainda promete muitas revelações, inclusive contra políticos adesistas, mas já expõe, para além de seus efeitos judiciais, a defasagem das Forças Armadas em relação à evolução dos conceitos de sociedade e de seu papel nesse universo.

A família Cid confunde sua imagem com a família militar, explica a proteção aos acampamentos em frente ao QG do Exército, sede dos atos golpistas, e desnuda o despreparo profissional de seus integrantes em contraste com a lendária qualidade da formação profissional e moral dos militares.

Desde Pazuello, o general da Saúde, até Mauro Cid e família, o elemento analógico-subversivo está presente. O caminho das investigações sobre a trama da ruptura constitucional denuncia um Exército seduzido pela permanente tentação de tutelar a sociedade civil.

Capturar e-mails e mensagens de Whatsapp deletadas de forma incompleta é tarefa fácil para qualquer criança recém-saída das fraldas. É o jardim de infância da era tecnológica, que derrotou oficiais encarregados da segurança presidencial, com formação na inteligência. Ainda bem, nesse caso.

Os segredos caem, um a um, como no sugestivo título da operação policial roubado á Bíblia: Lucas 12:2, traduzido no versículo “não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido.” A ironia é o Sudário profano do general Lourena, sobretudo sob o lema oficial “Deus acima de todos”.

Oculto, por ora, resta o mistério por trás da célebre frase de Bolsonaro a Villas Boas, já como presidente da República. “General, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.

Será preciso ir além da retórica, porque reputações, como os diamantes, são eternas. Falsos brilhantes reluzem, mas não brilham.

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