O relatório analisa a relação entre desigualdades e democracia no Brasil, destacando como a adoção de políticas inclusivas e de participação social é importante para a redução dos diversos tipos de desigualdades
por Juliana Cavalcanti em 06/09/21 14:49
Num período em que tanto se fala sobre a possibilidade de um golpe militar e na véspera de manifestações programadas por todo o país neste 7 de setembro, é importante pensar sobre a democracia e sua consolidação, ao longo de pouco mais de 30 anos da Constituição de 1988 – também chamada de Constituição Cidadã. Elaborada durante o processo de redemocratização, após 25 anos de ditadura militar (1964-1985), a Carta Magna de 1988 restabeleceu a democracia no país e instituiu diversos direitos à população (civis, sociais, trabalhistas, etc), com um compromisso universalidade de direitos e deveres que de fato nunca se completou totalmente. As desigualdades permanecem e a participação popular nas instâncias de decisão e nos mecanismos democráticos na maioria das vezes ainda está restrita a uma elite que mantém o controle do poder, utilizando os mecanismos da democracia para a manutenção do status quo. Apesar de ainda ser um país bastante desigual, relatório da Oxfam Brasil mostra que períodos de ditadura significaram agravamento nas situações de pobreza e desigualdade social.
O relatório “Democracia inacabada: um retrato das desigualdades brasileiras – 2021”, elaborado pela Oxfam Brasil, analisa a relação entre desigualdades e democracia no Brasil, destacando como a adoção de políticas inclusivas e de participação social é importante para a redução dos diversos tipos de desigualdades presentes na sociedade brasileira. Essa discrepância entre o tamanho de diversos segmentos da sociedade e sua participação nas instâncias de decisão é evidenciada por vários dados levantados para o relatório e mostra como mulheres, população negra, indígenas e população LGBTQIA+ têm um espaço restrito, enquanto homens brancos dominam as posições sociais de decisão.
O sistema político-partidário é um dos exemplos. Segundo o relatório, em 2020, apenas 16% das pessoas eleitas vereadoras no Brasil eram mulheres. As mulheres negras – que totalizam 27,8% da população brasileira, ocupam apenas 2,53% das cadeiras na Câmara dos Deputados. “A Oxfam Brasil lança esse relatório anualmente, sempre com um olhar diferente sobre as desigualdades do país. Este ano, nosso foco foi a questão da participação política e o impacto na democracia e como o fato de a gente ter vários grupos subrrepresentados, principalmente os grupos mais impactados pelas desigualdades, pessoas negras e mulheres, por exemplo, a gente não consegue ter políticas públicas para diminuir essas desigualdades”, aponta Jefferson Nascimento, coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil.
Debruçados sobre questões sobre condição de renda e períodos de limitação da participação social, os pesquisadores identificaram o aumento da concentração de renda e da desigualdade exatamente em dois períodos em que o Brasil viveu momentos de ditadura. “Olhando desde 1920, a ditadura do Estado Novo (1937-1946) e o Golpe Militar de 1964 foram dois períodos em que a desigualdade e a concentração de renda aumentaram. Foram governos que limitaram a participação social, a representação política (o Estado Novo aboliu o direito ao voto), restringiu a atuação de sindicatos e associações e tudo isso beneficiou uma política econômica para quem já tinha meios para atuar na sociedade”, complementa Jefferson Nacimento.
Com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, vários indicadores começaram a apontar para a redução das desigualdades no país, com a construção de políticas públicas que possibilitaram maior inclusão social. O processo de participação incluiu a criação de diversos conselhos consultivos da sociedade e também o fortalecimento de organizações da sociedade civil organizada, possibilitando um modelo de controle social, transparência e incentivando a participação das pessoas. O auge dessa política de participação social aconteceu entre os anos de 2001 e 2010, ressalta o coordenador da Oxfam Brasil, quando foram criados 17 conselhos de participação da sociedade. Outras instâncias consultivas, como conferências para definir políticas públicas e experiências de implementação de orçamento participativo são outros exemplos lembrados pela Oxfam Brasil com diretamente relacionados com a destinação de recursos e com influência na redução das desigualdades.
O relatório aponta que “embora a tradição de conferências nacionais remonte ao início dos anos 1940, sua realização se disseminou após a promulgação da Constituição Federal de 1988, impelida pelos mandatos constitucionais de participação da sociedade civil nas áreas de saúde e assistência social”. Segundo o levantamento, até o ano de 2016, foram realizadas 154 conferências nacionais – das quais 109, entre 1992 e 2016 (74 entre 2003-2010). “No período de 1992 a 2012, 21 foram na área da saúde, 20 sobre pautas de grupos minoritários; seis sobre meio ambiente; 22 sobre Estado, economia e desenvolvimento; 17 sobre educação, cultura, assistência social e esporte; e 11 sobre direitos humanos”, mostra o documento.
A ascensão de Jair Bolsonaro (sem partido) ao poder, eleito em 2018 e com o governo iniciado em 2019, fez o Brasil retroceder em diversos aspectos em relação à participação da sociedade nas instâncias de decisão do país. Em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro pôs fim a todos os conselhos participativos da sociedade civil; entre os quais o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) – criado no Governo Itamar Franco (PMDB), em 1993; encerrado em 1995, pelo Governo Fernando Henrique Cardoso (1995) – quando foi substituído pelo Programa Comunidade Solidária; e restaurado em 2004, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O relatório da Oxfam Brasil aponta que nada menos que 93% dos colegiados participativos ligados à administração federal brasileira foram extintos em 2019; reduzindo, dessa forma, a participação, o controle social e a transparência. O impacto da extinção do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), por exemplo, é visto como uma influência direta no aumento da fome no Brasil. O Consea teve papel determinante para combater a fome no Brasil e levou o país a sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2014.
“Bolsonaro assume declarando ataque a sociedade civil e atuando por sua desmobilização. Com seu discurso de por fim a todo ativismo e o fato de ter encerrado todos os conselhos teve um impacto muito grande nas instâncias de participação da sociedade. A extinção do Consea teve grande impacto no sistema de combate à fome, pois era um ambiente de consulta e de elaboração de normativas sobre o assunto. Logo nos primeiros meses percebeu-se o aumento da fome e números recentes falam de 54% da população em situação de insegurança alimentar; 117 milhões de pessoas não se alimentam direito”, destaca Jefferson Nascimento.
O relatório da Oxfam Brasil destaca que o atual sistema político brasileiro privilegia a eleição de parlamentares homens e brancos. A situação pode se tornar mais crítica em relação à restrição participativa de diversos segmentos da sociedade na política brasileira, se o Novo Código Eleitoral – previsto para começar a ser votado na Câmara dos Deputados a partir desta quarta (08), for aprovado da forma como está proposto.
A professora de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem), Marlise Matos, ressalta como os debates de questões importantes para a participação política da sociedade têm sido debatidos de forma apressada e pouco democrática no Congresso Nacional. Depois da proposta de Reforma Política – que acabou sendo votada de forma inusitada e sem programação prévia, numa sessão confusa, em que os parlamentares acabaram aprovando a volta das coligações partidárias para os cargos legislativos, a discussão do Novo Código Eleitoral tornou-se uma preocupação urgente.
“É muito grave o que estamos vivendo. Existe um cenário de corrosão da democracia; concreto, não é teórico. No caso da votação da reforma política, o fato de a votação ser antecipada de forma repentina é grave. É um debate estrutural e as pessoas têm que se preparar para debater um assunto que pode promover uma uma mudança radical do sistema eleitoral brasileiro”, ressalta a cientista política.
Ela continua lembrando que a estratégia de antecipar votações e mudar a ordem do debate tem sido recorrente na gestão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). “No caso do Novo Código Eleitoral, são 902 artigos com assuntos muito importantes, como a federação de partidos, proposta de que o controle e a fiscalização de contas dos partidos sejam feitos por empresas privadas e não pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), fim da possibilidade de candidaturas coletivas, entre outras medidas que na prática pretendem tirar o poder do TSE e a autonomia do poder judiciário sobre o processo eleitoral do país”, destaca Marlise Matos.
Para ter validade para as eleições de 2022, as medidas precisam ser aprovadas na Câmara e no Senado até outubro deste ano – o que torna a velocidade para a aprovação mais um fator de restrição do debate sobre assuntos importantes e diretamente relacionados com a consolidação da democracia. “Os grupos diretamente afetados com essas medidas são as minorias. Levar adiante a votação de temas importantes sem debater com a sociedade acaba corroendo as instituições da democracia, desconstruindo a participação política como um projeto continuado. Tudo votado muito rápido para que a gente não consiga acompanhar”, complementa a professora da UFMG.
Jefferson Nascimento concorda com a cientista política Marlise Matos e destaca que entre os mais de 900 artigos do Novo Código Eleitoral constam desde propostas de mudança do nome da Câmara dos Deputados a alterações sobre a realização e divulgação de pesquisas eleitorais, passando por diversas propostas de redução do poder do TSE.
“Todo o pacote de propostas está avançando por meio de atalhos e tem sido acelerado sem debates para ser votado até outubro, num processo totalmente ‘torto’. Uma das propostas é reduzir as punições aos partidos que descumprirem a legislação. Trata desde questões como a realização de comícios no dia da eleição, sobre carros de som em frente às seções eleitorais e também sobre a questão do ‘Caixa 2’. Além disso, tem algumas ‘pegadinhas’ como uma nova divisão de recursos para candidaturas de pessoas negras e mulheres”, complementa o coordenador da Oxfam Brasil, destacando que essa redução no debate, agravado pela situação de pandemia do Covid-19, tem afetado diversas discussões atualmente e interferido diretamente na participação da sociedade no processo democrático brasileiro.
Comentários ( 0 )
ComentarMyNews é um canal de jornalismo independente. Nossa missão é levar informação bem apurada, análise de qualidade e diversidade de opiniões para você tomar a melhor decisão.
Copyright © 2022 – Canal MyNews – Todos os direitos reservados. Desenvolvido por Ideia74
Entre no grupo e fique por dentro das noticias!
Grupo do WhatsApp
Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo.
ACEITAR