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A operação no Jacarezinho e o julgamento social

O racismo está tão infiltrado na sociedade que poucos percebem o preconceito automático ao celebrar a morte de anônimos

por João Paulo Martinelli em 05/08/21 17:34

A polarização da política no Brasil tomou proporções absurdas e chegou aos mais variados assuntos, dentre os quais as operações policiais na inútil guerra às drogas. Os comentários às notícias nos portais de jornalismo são bem extremistas: quem discorda da atuação da polícia é defensor de bandido porque quem morreu, merecidamente, era traficante. Apesar de as identidades dos mortos não terem sido divulgadas, a satisfação pelo alto número de executados é grande por parte da sociedade. Esse episódio mostra como o país não é, ainda, uma democracia de fato.

Não se pretende, aqui, fazer um juízo de valor sobre as pessoas mortas, incluindo um policial. Deve-se ponderar que a operação, em primeiro lugar, desobedeceu a determinação do Supremo Tribunal Federal – provavelmente, por isso, foi denominada “operação exceptis” – e seu resultado foi desastroso. Dos 21 mandados de prisão, apenas três foram cumpridos e outros três alvos foram mortos. Pouco para uma diligência que, segundo informações oficiais, teve dez meses de planejamento. Além disso, uma pequena quantidade de armas foi apreendida e tudo indica que houve falha na perícia dos corpos, como alguns órgãos de imprensa noticiaram.

Supondo que todos os mortos eram realmente criminosos – o que até agora é uma incógnita – o policial só pode atirar para matar quando estiver numa situação de conflito em que sua vida, ou de outro, esteja em perigo. É a famosa excludente de ilicitude, a legítima defesa, prevista na lei como uma permissão excepcional para praticar um fato que, originalmente, poderia ser considerado criminoso. Fora dessas circunstâncias, o procedimento é a realização da prisão para, posteriormente, identificar o suspeito e, se necessário, iniciar um processo. É assim que determina a lei e é a única alternativa constitucional. Não existe pena de morte no Brasil, muito menos pena sem processo.

Mais assustador é ler opiniões e manifestações de ódio contra pessoas que sequer foram identificadas. Várias fotos circulam nas redes e mensagens afirmando que os mortos portavam fuzis e eram perigosos – repita-se, sem conhecer as identidades. A impressão que fica é que, para muitas pessoas, ser negro e morar na favela é prova de ser criminoso e, por isso, o destino deve ser o cemitério. O racismo está tão infiltrado na sociedade que poucos percebem o preconceito automático ao celebrar a morte de anônimos, ainda que instados por fake news e tweets de extremistas.

Percorre as redes sociais a falácia de que a determinação do STF, que proibiu operações policiais nas comunidades durante pandemia, aumentou o poder do narcotráfico. Ora, essa decisão é recente e o crime organizado vem tomando conta de grande parte do território do Rio de Janeiro há algumas décadas, seja pelas facções, seja pelas milícias. A ausência do Estado é histórica e as lacunas deixadas são preenchidas pelo poder paralelo, principalmente onde há miséria e as autoridades só aparecem para exercer a repressão violenta. Atribuir tal culpa ao STF é afirmar que o combate ao tráfico sempre foi exitoso e somente agora encontra revés por causa da restrição.

A guerra às drogas é um fiasco e só produz tragédias. Atinge especialmente as pessoas marginalizadas que são obrigadas a conviver com o medo das facções e milícias que dominam as suas áreas e, quando a polícia aparece, o temor é ainda maior. Não à toa, a probabilidade de um negro ser morto é muito maior que a de um branco. É claro, operações nos bairros nobres não acontecem. O racismo no sistema de justiça criminal começa nas operações policiais e atinge o ápice nos tribunais. Que os fatos sejam devidamente apurados e todos os envolvidos sejam submetidos a julgamento. Por fim, que as pessoas reflitam sobre a doença do ódio que tomou conta de muitos.


Quem é João Paulo Martinelli?

João Paulo Martinelli é advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, e professor do IBMEC-SP.

* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews

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