Lembro desses personagens sempre que esbarro em figuras como Trump, Bolsonaro, Beppe Grillo e os seus genéricos nacionais
por Edson Neves Athayde em 05/08/21 17:25
Nunca tivemos o acesso tão fácil às memórias das gerações passadas e mesmo assim não aprendemos nada com os avisos feitos. Desde que inventámos a linguagem nunca deixámos de acumular advertências. Só não temos vocação para cometer erros novos, gostamos dos erros de sempre.
Para quem tem mais de 50 deve ser fácil recordar a figura de Odorico Paraguaçu: o Bem Amado. Autarca de uma cidade do interior da Bahia, sonhava inaugurar um cemitério (cada um entra para a posteridade como pode ou quer) só que ninguém morria dentro os limites da sua jurisdição. Desesperado, procura matar (sem sucesso) alguns dos seus próprios eleitores em planos mirabolantes. Atrasar a vacinação contra uma possível epidemia foi apenas um dos muitos expedientes que tentou.
Odorico era uma personagem de ficção, anti-herói de uma telenovela, de um filme, de uma peça de teatro. Assim como Adenoid Hynkel, o nome do déspota vivido por Chaplin em “O Grande Ditador”. Paródia de Hitler (feita no momento em que este ainda tentava conquistar o planeta) serviu de alerta, mas não impediu que houvesse a Segunda Guerra Mundial. O humor denuncia, mas raramente é levado a sério, sabe-se lá o porquê.
Como uma espécie de tio-avô direito de Odorico temos o Drº Simão Bacamarte, filho da pena de Machado de Assis. Bacamarte aparece na novela “O Alienista”, publicada em 1882. Na obra acompanhamos as idas e vindas políticas de uma comunidade a partir do impacto causado pelas tentativas de Bacamarte de separar os loucos dos normais. No começo, a ideia era internar os que teriam algum desvio de carácter. Quando há na vila mais internados do que não internos, muda-se o critério: loucos passam a ser os de boa índole, pois são a minoria, logo, fora da norma. Por fim, sobrará apenas um não interno, o próprio Bacamarte. Que então decide mais uma vez inverter o ônus. Declara-se louco e liberta o resto da população.
Lembro desses personagens sempre que esbarro em figuras como Trump, Bolsonaro, Beppe Grillo e os seus genéricos nacionais. E recordo que foi para eles (e para as suas turbas de seguidores) que se criou a palavra “caquistocracia”, o sistema de governo onde os líderes são escolhidos por serem os piores cidadãos.
Apesar de sua origem grega foi só no século XX que o termo ganhou notoriedade e uso alargado. Mussolini, Stálin, Ceausescu, Idi Amim, Gaddafi… a lista é extensa e agrega gente de direita e de esquerda indiscriminadamente. E não para de crescer.
Faz parte da democracia achar (ou saber) que o governo de turno é imperfeito. Daí que, mais tarde ou mais cedo, será substituído por quem lhe fizer oposição. A democracia pressupõe que, na tentativa de acertar, vamos errar. Para depois corrigir a mão.
Só líderes caquistocráticos acreditam que podem se perpetuar no poder. Mesmo que para isto precise convencer os seus adeptos a um doce suicídio colectivo, seja por doença, por guerra ou por fome. Para quem acha que isso impossível de acontecer por aqui, resta lembrar que, segundo os livros de história, já aconteceu mais de uma vez.
Ah, Odorico Paraguaçu acabou por morrer e assim pôde, enfim, ele mesmo, inaugurar o seu tão amado cemitério. O que não deixou de ser um final feliz.
Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar H. L. Mencken: “Democracia é a arte de, a partir da gaiola dos macacos, gerir o circo”.
Edson Neves Athayde é publicitário e escritor de crônicas.
* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews
Comentários ( 0 )
ComentarMyNews é um canal de jornalismo independente. Nossa missão é levar informação bem apurada, análise de qualidade e diversidade de opiniões para você tomar a melhor decisão.
Copyright © 2022 – Canal MyNews – Todos os direitos reservados. Desenvolvido por Ideia74
Entre no grupo e fique por dentro das noticias!
Grupo do WhatsApp
Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo.
ACEITAR