Qual é o limite do número de mortos, de hectares destruídos de floresta, de orçamentos paralelos, de aglomerações sem sentido, de ameaças de golpe?
por José Monteiro em 05/08/21 17:32
O Rio Rubicão localiza-se ao nordeste da Itália, e nos tempos da dominação romana da região era o limite até onde suas tropas poderiam chegar. Isso ocorria para não afetar a estabilidade do poder central. Esse era o limite estabelecido para todos os generais romanos. Ninguém poderia manobrar tropas após essa fronteira. Trocando em miúdos, tal política visava a preservar o Estado de um eventual golpe apoiado por tropas romanas.
No último domingo, 23 de maio, vimos embasbacados a presença de um general da ativa do exército brasileiro discursando a uma multidão, ao lado do presidente da república, em um evento em que mais uma vez podíamos escutar mensagens golpistas e contrárias ao estado democrático. Uma vez mais, Bolsonaro avança no processo de deterioração das instituições públicas, e a cada vez que dá um passo adiante em direção ao abismo, vozes se levantam no sentido de censurar esses atos, sob o pretexto de “que agora chegamos ao limite”.
Onde está o Rubicão brasileiro? Onde nossas autoridades estabelecerão os limites para um grupo que quer usar os instrumentos democráticos contra a própria democracia? Há muitos autores que vêm descrevendo como esse processo ocorre, e parece que a política brasileira nos dias atuais corresponde ao paradigma apresentado, entre outros, por Steven Levitsky e Daniel Ziblat em seu livro “Como as Democracias morrem”. Na obra, os autores buscam explicar como uma democracia pode ser deteriorada em suas estruturas, e o Brasil atualmente é um campo fértil para a continuação desses estudos.
O fato é que pela primeira vez o país tem, como mandatário, um representante da extrema direita. É difícil encontrar algum outro político, apoiador de Bolsonaro, que esteja mais a direita que este. E em governos disruptivos como o atual, não temos, como humanidade, sabido como preservar os valores democráticos. Nossas democracias atuais dependem muito da pessoa que está no poder. Se é alguém que respeita o jogo democrático, avançamos, se é um governante que avança contra as liberdades individuais, sofremos um grande retrocesso. Isso demonstra, no caso brasileiro, que temos que avançar muito em direção a uma democracia que possua os elementos de auto defesa necessários para evitar sua destruição.
O problema, no fim do dia, não é se um general da ativa se faz de louco e participa, contra todos os regulamentos militares, de uma manifestação de caráter político-golpista. Os loucos estão aí para fazer loucuras. O que não pode ocorrer é que o exército silencie quanto a esta atitude de um de seus oficiais generais, já que isso daria uma forte mensagem à tropa, de que tal fato passado, assim como os eventuais acontecimentos futuros, não são tão graves e, consequentemente, está liberada a participação de militares federais em manifestações da mesma natureza. Estaríamos admitindo que gente armada até os dentes participe do jogo, e isso nos levaria a mais um dos tradicionais golpes como aqueles que os militares brasileiros brindaram ao país durante tantas vezes, no século passado.
O cumprimento de normas, tão próprio de um regime democrático, deve ser ainda mais importante no âmbito dos militares. Não se pode aceitar que um presidente da república use os militares federais e estaduais em suas aventuras antidemocráticas. Não se pode aceitar que a democracia prescinda de elementos para obrigar um governo a atuar segundo o conhecimento científico, que é o único que nos protege do caos e das doenças. Não podemos nos conformar que os militares sejam apresentados como fiadores de atitudes que desprezam todo o conhecimento científico adquirido pelo ser humano. E é isso o que Bolsonaro tem feito, com ou sem a anuência de seus comandados.
O Comandante da XIII legião romana, general Caio Júlio Cesar, descumpriu a lei romana e levou suas tropas além do Rio Rubicão, tendo se tornado o ditador perpétuo de Roma. Conta-se que ao passar pelo curso d’água, disse: “Alea jacta est”, ou “A sorte está lançada”. Tinha conhecimento, então, de todos os riscos e de todas as consequências possíveis a partir de seu comportamento, mas se sentia forte o suficiente para fazê-lo. Era, portanto, mais forte do que o regime romano, e o submeteu.
E o nosso Rubicão, onde está? Até onde as instituições e seus representantes deslocarão esse limite legal e moral a um ponto adiante da tragédia que estamos vivendo? Qual é o limite do número de mortos, de hectares destruídos de floresta, de orçamentos paralelos, de aglomerações sem sentido, de ameaças de golpe? Onde, afinal, estão nossos limites como sociedade?
A CPI instalada para apurar o morticínio atual no Brasil surgiu como uma brisa de esperança aos que buscam por respostas. Até agora, não havia nenhuma necessidade de que o governo desse explicações sobre a inacreditável situação que estamos vivendo. Em um país que servia como modelo de vacinação para o mundo, assistimos agora um show de horrores e de teorias da conspiração. Estamos importando, a fórceps, modelos de divisão sociais que não nos pertencem, que não fazem parte de nossa tradição social. São tolices que ganham um ar de verdade nas redes sociais: são Qanons, mamadeiras com formatos suspeitos, kits gays, conspiradores pedófilos que se unem para conquistar o mundo ao lado de todos os que não são simpáticos às insanidades governamentais locais.
Veremos, nos próximos dias, se o nosso Rubicão será posicionado definitivamente. Se o fato de um general da ativa, contra tudo o que disse em seu depoimento na CPI, estar participando de uma reunião antidemocrática deve ser ignorado. Se as aglomerações organizadas pelo presidente da república podem seguir indefinidamente, como se comemorassem o fato de termos quase meio milhão de mortos, na catástrofe mais aguda de nossa história. Se, ao final, aceitaremos calados o lugar de insignificância geopolítica que esse governo nos tem condenado. Se aceitamos passar tanta raiva e vergonha calados.
Não há espaços vazios na política, como é sabido. Ou as forças democráticas se unem e se organizam para evitar que tal degradação não chegue aos pilares mais fundamentais da nossa democracia, ou sobreviveremos para assistir, mais uma vez, as pataquadas próprias de aprendizes de ditadores, que não estão nem um pouco preocupadas com os limites estabelecidos pelas leis ou pela constituição. Cabe a nós, que acreditamos na força das instituições democráticas, garantir que exista um limite definitivo, que não será ultrapassado por quem quer que seja.
Precisamos urgentemente de nosso Rubicão.
José Monteiro é brasileiro, vive na República Dominicana e é diretor da ONG Missão Internacional de Justiça. É policial federal licenciado.
* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews
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