Como perdemos o contato, gostaria muito de saber o destino desta mulher que cuidava de pessoas da região
Em 17/08/23 15:07
por Balaio do Kotscho
Ricardo Kotscho, 75, paulistano e são-paulino, é jornalista desde 1964, tem duas filhas, 5 netos e 19 livros publicados. Já trabalhou em praticamente todos os principais veículos de mídia impressa e eletrônica. Foi Secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República (2003-2004). Entre outras premiações, foi um dos cinco jornalistas brasileiros contemplados com o Troféu Especial de Direitos Humanos da ONU, em 2008, ano em que começou a publicar o blog Balaio do Kotscho, onde escreve sobre a cena política, esportes, cultura e histórias do cotidiano
São Paulo - Usuários de drogas saem da Praça Princesa Isabel e voltam a ficar entre a Avenida Cleveland e rua Helvétia (Rovena rosa/Agência Brasil)
A quarta vez em que fui convidado a trabalhar na Folha, em março de 2018, minha primeira pauta foi contar a história de Eliana Toscano, a “mãe da Cracolândia”.
Nestes dias de 2023 em que a imprensa volta a falar diariamente do drama da cracolândia, na região central de São Paulo, lembrei-me dela.
Como perdemos o contato, gostaria muito de saber o destino desta mulher que cuidava de pessoas da região por conta própria e pretendia abrir uma casa de acolhida. Por onde andará?
Será que ainda circula pela cracolândia para saber como estão os “conviventes”, como ela chama aqueles caminhantes do interminável fluxo de dependentes químicos em seu constante confronto com a polícia.
Seis meses depois da publicação da reportagem, Eliana e eu fomos convidados a contar esta história no programa do amigo Pedro Bial, que já fez de tudo na vida, mas nunca deixou de ser repórter.
Era justamente um programa em homenagem aos repórteres, em que dividi o palco com Marcelo Canellas, o grande craque da Globo, que já não está mais lá. Bial abriu o programa com um emocionante mini-doc da produção dele sobre Eliana e a cracolândia e eu contei como foi que a descobri. Foi ao ar no dia 27/6/2018 e pode ser visto no Globoplay.
Foi assim que cheguei a essa mulher incrível, como narro na abertura da matéria publicada na Folha do dia 18/3/2018 (tem no Google) com o título “Mãe da cracolândia, ex-viciada se dedica a ajudar dependentes em São Paulo”:
“De: Julia Teresa
Para: Painel do Leitor
Assunto: Minha mãe é a mãe da Cracolândia
O e-mail chegou à Folha às 10h12 de quinta-feira (8), por coincidência Dia Internacional da Mulher.
“O incrível é o poder que ela tem de acolher, desenvolver e conseguir mudar o destino de algumas pessoas”, escreveu a filha Julia.
O nome da mãe da cracolândia é Eliana Toscano, 46, paulistana formada em letras, que já chega ao nosso encontro no dia seguinte dando um forte abraço em todos e falando bastante, sem parar.
Já estavam à sua espera três “conviventes”, como se tratam entre si os dependentes químicos do chamado fluxo da cracolândia, legião de deserdados da cidade que perambulam em bandos pelas ruas centrais de São Paulo.
Sem ninguém pedir, Eliana abre a bolsa e vai mostrando as “lembrancinhas” que recebeu do povo da rua, que ela trata como se fossem todos de sua família.
Entre as prebendas, meia dúzia de cachimbinhos de fumar crack, a única droga que ela afirma nunca ter usado. “Tenho ciúmes deles, não dou para ninguém. Ganhei de quem parou de se drogar”, conta, enquanto exibe seus troféus.
Na praça Princesa Isabel, aos pés da estátua do Duque de Caxias, Eliana conversava longamente com um deles na tarde de sexta-feira (9). Atendendo a seu pedido, empresta a Bolívar Rafael, 50, cadeirante, negro e homossexual, lápis de olho e batom para ele retocar a maquiagem.
“Meu nome de rua é Ramon”, diz ele, sempre de chapéu preto sobre as longas tranças rastafári, elegante em suas roupas velhas em tons de cinza, enquanto espera um amigo para empurrá-lo de volta ao albergue provisório que se tornou permanente.
“É para falar a verdade ou você prefere que eu conte mentiras?”, pergunta ao repórter, antes de falar da vida. Bolivar não conheceu o pai, a mãe é doméstica e há tempos não vê a única irmã, Rosinéia. Parou de trabalhar faz dez anos, impossibilitado por uma doença grave, a polineuropatia periférica. Antes, fez de tudo no ramo da hotelaria: pizzaiolo, barman, ajudante de cozinha, copeiro e também cabeleireiro.
Eliana o ajuda a se maquiar e presta muita atenção na conversa como se fosse a primeira vez que ouvisse a história. Dar atenção é a principal arma dessa voluntária social para cativar os dependentes”.
E assim fui entrando aos pouquinhos no mundo de Eliana, conhecendo seus personagens e suas histórias, que costumam ter um traço comum: antes da grande tragédia de cair na rua das drogas, esses brasileiros enfrentaram outras tragédias pessoais ou familiares.
Assim foi com a própria Eliana, filha de empresário do setor automotivo casado com funcionária pública, nascida numa maternidade dos Jardins, que morava numa boa casa em Cidade Ademar e veio parar aqui depois que sua irmã, Rita de Cássia, foi brutalmente assassinada.
“Meus pais tiveram revezes na vida e foram trabalhar como zeladores de uma escola pública. Mudamos para lá. Minha vida muito louca começou quando minha irmã Rita de Cássia, aos 22 anos, foi brutalmente assassinada por um ex-noivo, que era traficante de cocaína. Foi o meu primeiro contato com drogas”.
O que os une nas ruas é a dependência química, a solidão, a depressão, a busca de um lugar melhor no mundo. Ajudá-los, como conseguiu, é a profissão de vida e de fé de Eliana.
Nos primeiros dias de seu governo, em 2017, o ex-prefeito João Doria, anunciou que a “cracolândia acabou” após uma megaoperação de limpeza da área e desobstrução de vias, além da prisão de traficantes, exatamente como vem acontecendo nas últimas semanas, com os mesmos resultados.
Reportagens não mudam a realidade.
A cracolândia só viu crescer o número de drogados e a violência policial, afugentando moradores e comerciantes. É um dos grandes problemas nacionais que parecem insolúveis.
Mas reportagens podem inspirar outras pessoas a seguir o exemplo de Eliana Toscano para levar ajuda aonde é mais necessário, sem pedir nada em troca, e minorar o sofrimento destes refugiados em seu próprio país, que, encurralados, não têm mais para onde correr.
Em tempo: esta coluna foi inspirada em sugestões de pauta enviadas por vários leitores que me pediram para contar histórias de reportagens antigas.
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