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Bruno Cavalcanti

Depoimento

Danuza Leão: Fez quase tudo em busca de paz

Danuza atingira a paz de uma pessoa que já havia feito de tudo na vida. Amou, foi amada, abandonou e foi abandonada, teve filhos, escreveu livros, plantou árvores, conheceu chefes de Estado, foi modelo internacional...

por em 23/06/22 19:09

São Paulo, fevereiro de 2020. Pouco tempo antes de a pandemia estourar no Brasil. Toca o celular, número do Rio de Janeiro. Penso se atendo ou não (quem é de São Paulo nunca atender DDD 21, assim como os cariocas se recusam a atender o 11, coisa de costume). Atendo. A voz rouca e inconfundível do outro lado da linha se apresenta sem demoras: “Bruno? Danuza Leão”.
Meu coração congelou. O tempo parou. Eu só fazia gaguejar e andar pelo apartamento de menos de 30 metros quadrados. A ligação no meio de uma tarde quente de verão tinha um motivo. Havia lido “Pequeno Manual Prático para a Vida Feliz”, peça que escrevi não sobre sua vida, mas sobre sua visão acerca do mundo. E gostou de tudo, menos do final (“Parece um bolero daqueles de Carlos Gardel”).
A peça, um monólogo simples, de um ato, não era linear. Era uma mulher – Danuza, presumidamente – em cena relembrando passagens de sua vida que, por acaso, se cruzaram com as vidas do pintor Di Cavalcanti, do astro feancês Daniel Gélin, do cronista Antônio Maria e, claro, do jornalista Samuel Wainer e da cantora Nara Leão.
Gostou, mas não aprovou. “Deus me livre ficar com fama de censora a essa altura da minha vida” era a frase que mais repetia durante todos os mais de 30 telefonemas que trocamos ao longo de fevereiro. Danuza não queria a peça por um motivo muito de tom prático (o tom que adotou ao longo de sua vida): não queria ser incomodada. Não queria jornalistas perguntando, amigos ligando, família falando. Queria ser deixada em paz. E assim foi feito.
Ao longo deste um mês, tudo entrou em pauta nestes telefonemas. O politicamente correto, a falta de originalidade do Carnaval, o acidente que um de seus gatos sofreu ao cair da janela de seu apartamento num prédio pequeno em Ipanema, o pilates e o quanto estava cansada de escrever. Sabia que seus livros não seriam reeditados e estava tranquila.
Danuza atingira a paz de uma pessoa que já havia feito de tudo na vida. Amou, foi amada, abandonou e foi abandonada, teve filhos, escreveu livros (a maioria, best sellers), plantou árvores, conheceu chefes de Estado, foi modelo internacional (a primeira brasileira a desfilar em Paris) e compôs o elenco de Terra em Transe, além de ter visto a Bossa Nova nascer na sala do apartamento dos pais – não ter dado a menor importância.
A vida de Danuza daria um livro, e deu. “Quase Tudo”, suas memórias publicadas em 2005 (outro best seller), onde ela narra com franqueza admirável situações como o fato de não ter abalado Paris – era apenas uma modelo manequim de um ateliêr local -, ter vivido uma relação absurdamente abusiva com Antônio Maria, que chegou a agredi-l; ter contrabandeado, entre uma viagem e outra, cartas para Frei Beto com a ajuda de um general caído por seu charme; ter recusado o convite de Silvio de Abreu para escrever uma novela; tes escapado de uma batida militar porque foi comer uma moqueca ba casa dos pais; ter sido amante de Daniel Gélin com a culpa das grandes paixões; ter entrado de cabeça no álcool e nas drogas após a morte do filho Samuca, jornalista como o pai.
Entretanto, um de seus maiores orgulhos foi o de ter aprendido e absorvido tudo o que pôde das pessoas que a rondavam, e a principal foi Samuel Wainer, dono do império Última Hora, um dos jornais de maior prestígio do Brasil. Com Wainer, Danuza teve três filhos e aprendeu ensinamentos que a ajudaram a se transformar na colunista mais influente dos anos 90 no Jornal do Brasil.
Danuza foi também uma escritora influente, tendo colocado na lista de mais vendidos não um, mas dois livros de etiqueta, “Na Sala com Danuza” (1992) e “É Tudo tão Simples” (2011), além de dois livros de viagem “Fazendo as Malas” (2008) e “De Malas Prontas” (2009), entre tantas outras coletâneas de crônicas saborosissimas, “As Aparências Enganam” (2004), “Crônicas para Guardar” (2002), “Danuza Todo Dia” (1994) e “Danuza e Sua Visão de Mundo sem Juízo” (2012), seu último livro a chegar às livrarias.
Como cronista, assinou mais de uma centena de textos na Folha de S. Paulo, onde falou sobre política, amenidades, e causou polêmica ao criticar a PEC das Domésticas e por sentir falta de um tempo onde as coisas eram exclusivas – o que lhe rendeu o título de dondoca. Já no jornal O Globo, à época do estouro do movimento #MeToo, causou polêmic ao equiparar assédio e paquera.
Entre suas entrevistas, deu declarações icônicas, entre elas a de que, ao se apaixonar, vira uma gueixa. Desde a morte de sua irmã, Nara, nunca mais ouviu seus discos. E gostava de lembrar que o casamento com Samuel durou mais do que o matrimônio em si. Mesmo separados, seguiram juntos. Samuel foi, em suas palavras, o amor de sua vida. E ela foi o da vida dele.
Danuza dizia que não gostava de mulheres (são todas chatas) e guardava sempre um pacote de biscoitos Globo para uma emergência, como a que se encontrava numa das muitas tardes de conversa. Na emergência, lhe ensinei a receita de uma crepioca, que ela adorou e saudou como “ótima para a dieta”.
Numa outra conversa, já bêbados de sono, falamos sobre a chance de escrevermos uma peça juntos. Um grupo de amigos que vai para uma ilha grega num verão e coisas louquíssimas acontecem. Claro que a ideia não avançou – e nem poderia, Danuza sempre detestou teatro. Em outra ligação, a revelação de um segredo literário sobre Linda, a amiga maluca que se apaixonara por um toureiro e depois pelo mestre de uma seita alternativa em seus dois livros de viagem (mas esse segredo, não revelo).
Nossa relação terminou abrupta como começou, entretanto minha relação com suas obras segue em céu de brigadeiro. O desejo do Pequeno Manual Prático para a Vida Feliz ainda é uma realidade. Se essa peça vai sair do papel, não sei, mas o que sei é que, para k bem ou para o mal, Danuza saiu de cena sabendo que fez muita gente feliz, mesmo que isso não fizesse diferença. A diferença ela mesma fez.
danuza leão

Nicole Cordery caracterizada como Danuza para a peça Pequeno Manual Prático para a Vida Feliz. Foto: Vinicius Campos.

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