Bruno Cavalcanti

CRÍTICA

Epopéia: Nautopia solidifica caminhos para o grande musical brasileiro

Musical Nautopia, de Daniel Salve cumpre temporada no Teatro B32, em São Paulo.

por bruno cavalcanti em 23/04/22 12:55

Foto: Cinthia Carvalho

É sintomático que, desde sua estreia no dia 01 de abril, no palco do novo Teatro B32, em São Paulo, o musical Nautopia, uma epopéia náutica criada e dirigida pelo multiartista paulistano Daniel Salve, tenha dividido opiniões nas redes e fóruns dedicados a discussões acerca do teatro musical. Original brasileiro que foge aos padrões contemporâneos, a obra equaciona narrativa de tom épico com canções inéditas, cercada de uma produção de grande porte.

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Levando em conta as produções que chegaram à cena nas últimas duas décadas, é seguro afirmar que Nautopia faz parte de um raro panteão de montagens que enfileiraram com maestria estas características, podendo se assemelhar, numa referência direta, a 7 – O Musical, espetáculo em que a dupla Charles Möeller e Claudio Botelho deram (bom) passo autoral e levaram Ed Motta ao mundo dos musicais com fluência surpreendente, e, mais recentemente Conserto para Dois, o musical feito sob medida para Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello com texto e letras de Anna Toledo e músicas de Tony Lucchesi e Thiago Gimenes.

Nestes dois casos específicos, músicas e dramaturgia eram inéditas, sem se alicerçar sobre uma biografia ou sucessos de um artista específico, ou uma seleção de canções do repertório popular nacional, ou mesmo internacional.

Em paralelo, outros espetáculos também trilharam um caminho similar, entre eles as criações de Vitor Rocha, um dos principais nomes do teatro musical contemporâneo, com produções menores e mais artesanais, mas com força poética a ponto de lhe render nada menos do que dois prêmios Bibi Ferreira.

As criações de Rocha, assim como outros tantos exemplos, não gozam de uma grande produção que se imponha historicamente frente a espetáculos importados da Broadway e do West End, fazendo de Nautopia um novo farol para a produção tipicamente brasileira, asfaltando caminho ainda penoso no mercado da cultura Patropi.

Foto: Cinthia Carvalho

Isto posto, o musical não apenas é farol – e deveria ser lido assim – para grandes produções originais brasileiras, mas é também, e principalmente, o grande espetáculo da temporada até então. Que pese sua longa duração (três horas cravadas), Nautopia é musical que resulta essencialmente redondo, sem excessos – ainda que tenha perdido quase uma hora de duração se comparado ao primeiro workshop, realizado em meados de 2020 pouco antes da pandemia do Coronavírus.

A obra toma como mote o mito de Ulysses para narrar a trajetória de Tomás, um jovem navegante que abandona sua terra natal, o fictício Vale da Utopia, em Santa Catarina, após o desaparecimento de sua irmã, Clara.

Após anos instalado na ilha de Paraty e com uma vida nova estabelecida – representada pelo sólido relacionamento com a mergulhadora Iara -, o rapaz decide tomar o caminho de volta ao tomar conhecimento do precário estado de saúde de seu padrinho, Rocha, e do retorno de seu amor de juventude, Selena, para a mesma ilha.

A despeito de sua premissa simples, o espetáculo se desenvolve no tempo da delicadeza, fazendo de seu (extenso) primeiro ato um meio para perfilar personagens e implantar os conflitos estabelecidos na história de cada um e, num cenário macro, da fundação desta ilha semeada por sonhos hedonistas.

Mais ágil, o segundo ato se estabelece na resolução de conflitos e na conexão de cada personagem com suas respectivas motivações, fugindo aos estereótipos e maniqueísmos, fazendo mesmo de seu herói uma figura dúbia que ajuda no embate de narrativas do fim de seu relacionamento tanto com Serena quanto com Iara, além do embate com um de seus irmãos de consideração, o pseudo vilão Tadeu.

O fato é que Nautopia é musical que não apenas estabelece a maestria de Daniel Salve como dramaturgo e diretor, mas confirma sua sina de artesão pop responsável por letra e música das (excelentes) 25 canções que compõem a obra. E eis o ponto em que o espetáculo se torna a melhor investida brasileira dentro do teatro musical desde que, em 2001, a dupla Chico Buarque e Edu Lobo compôs as canções para Cambaio, de João e Adriana Falcão, fechando assim sua (profícua) parceria formada de trilhas de balés, filmes, peças e musicais.

Diferente do que acontece em uma série de espetáculos, nem sempre as canções estão à altura da história contada – ou vice e versa. É comum que, por se tratarem de obras inéditas, se estabeleça um estranhamento inicial que pode ou não se dissolver à medida que o espetáculo se desenvolve, ou é azeitado ao longo da temporada.

Em Nautopia, todas as canções não só estão equiparadas com a dramaturgia, como se mostram fortes o bastante para extrapolar o universo em que estão inseridas. Salve é grande compositor que inexplicavelmente ainda não enveredou pelo mercado da música pop.

Foto: Cinthia Carvalho

Não é exagero afirmar que títulos como Zenite, Fluir, Pés na Areia, Cetus (Homem ao Mar), Ruínas a Mais, O Náufrago e a Sereia, A Bruma, Olhar e Ver e Nautopia são pérolas pop que, num futuro, devem ganhar gravações para além do âmbito teatral. Mérito também da direção musical de Diego Salles, que constrói arranjos que não só valorizam o caráter épico e teatral das composições, como preserva sua aura estritamente pop.

Embora resulte fluido – da belíssima cenografia creditada à empresa Universo Cenotécnico, passando pelos figurinos de Theodoro Cochrane, a direção de movimento de Olívia Branco e o ótimo desenho de luz de Guilherme Paterno -, o musical tropeça apenas na seleção de seu elenco.

É verdade que um elenco de 26 atores raramente soará homogêneo, ainda que espetáculos como Barnum – O Rei do Show e A Família Addams – O Musical, apenas para citar dois exemplos recentes, tenham roçado a perfeição com seu grupo de atores. Nautopia chega perto.

Nomes já lendários do teatro musical tupiniquim, Neusa Romano e Jonathas Joba são responsáveis pelo excelente jogo de cena no qual imprimem leveza cômica e a tragicidade dramática de suas personagens que, embora coadjuvantes, ganham status de protagonismo à medida que a obra se desenvolve.

Parecido acontece com Luana Zehnun, Aurora Dias e Sofia Savietto, que constroem personagens cativantes em registros que navegam pelo drama, a comédia e o puro hedonismo e, até, etéreo. Mesmo com menos tempo de cena, Nina Vettá e Rafael de Castro conseguem bons registros, assim como Yudchi Taniguti, que, embora tenha registros variantes, conquista com base em carisma impressionante.

Entretanto, a narrativa soa truncada quando enfoca os embates dos irmãos Tadeu e Elias, ou busca narrar as origens de sua trajetória a partir de flashbacks em que nem sempre os intérpretes estão à altura de sua história. Atriz que já comprovou talento e fluidez cênica, Dara Galvão faz pouco pela jovem Lúcia (interpretada em idade adulta por Aurora Dias), assim como Bruno Vaz apela para maniqueísmos que empobrecem as nuances de seu jovem Rocha (Joba, em idade adulta).

Nani Porto e Max Grácio imprimem mais complexidade às suas personagens, enquanto Elá Marinho capta a comicidade de sua jovem Zara (Neusa Romano, em idade adulta), Já Camillo e José Diaz pouco fazem por Tadeu e Camilo, respectivamente, enquanto Bia Anjinho resulta apagada na pele de Isabel.

Por fim, o protagonista Beto Sargentelli encontra em Nautopia, o grande momento de sua carreira como protagonista. Embora colecione grandes coadjuvantes do quilate de Lucas Beineke, na montagem original da comédia musical “A Família Addams”, e Tony, o irmão mais velho do garoto que sonha ser bailarino em “Billy Elliot”, Sargentelli ainda não havia encontrado protagonista à sua altura.

Que pese o sucesso de Os Últimos Cinco Anos, musical que lhe rendeu uma indicação ao Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Ator, mas não alcançou seu ápice sob a direção de João Fonseca, Nautopia é o primeiro espetáculo em que o ator pode usar diferentes registros não apenas como ator, mas também – e principalmente – como cantor.

A construção de um Tomás soturno valoriza o talento de Sargentelli para o drama sem jamais resultar monotemático, fazendo deste o principal trabalho do ator em cena até o momento.

É verdade, contudo, que, ao longo da temporada, estes são detalhes a serem superados e que se distanciam ao se tratar do nervosismo de uma estreia, e jamais diminuem o brilho deste espetáculo que, desde seu workshop em 2020, prometia ser um dos grandes espetáculos da temporada.

Se não se deixar levar pelos apelos das redes e fóruns para diminuir obra já redonda, Daniel Salve (ainda) terá nas mãos não apenas o melhor musical em cartaz nesta temporada, mas também obra que, a longo prazo, pode criar caminho a ser percorrido por outras produções autorais que não queiram se curvar às exigências de um mercado que, acostumado ao consumo breve, tem acostumado mal o público de musicais. Quem viver…

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