Os grandes avanços nas ferramentas de edição gênica da última década têm o potencial de revolucionar o tratamento de doenças consideradas até então incuráveis
por Ricardo Weinlich em 16/11/21 18:43
No ano passado, duas cientistas – Emmanuele Charpentier e Jennifer Doudna – receberam a maior honraria científica por suas contribuições no desenvolvimento de um novo método de edição gênica, chamado CRISPR/Cas9. O Nobel de Química de 2020 reconheceu, menos de 10 anos depois dos trabalhos originais, a relevância e o impacto do uso desse sistema para modificar, com incrível simplicidade e precisão, uma sequência de DNA.
Descoberto inicialmente em bactérias como um sistema de defesa contra vírus invasores, o CRISPR/Cas9 foi rapidamente adaptado para servir como uma potente ferramenta para alterar o DNA de plantas, animais e até mesmo de células humanas.
O sistema funciona como uma sessão de corte e costura. A Cas9 é a “tesoura” que corta o DNA em locais exatos determinados por guias, compostos de pequenos trechos de RNA (uma molécula similar ao DNA) e feitos sob design em laboratório. Em seguida, é possível “costurar” o DNA de volta, mas alterando sua composição a partir de pequenos moldes feitos de DNA entregues às células.
Essas alterações podem impactar o funcionamento de um trecho de DNA (que chamaremos de gene) de diferentes maneiras, dependendo do objetivo que se quer alcançar. Uma possibilidade é modificar a sequência de um gene para suprimir seu funcionamento. Outra é corrigir um defeito existente para que o gene possa voltar a funcionar normalmente. E ainda é possível inserir trechos diferentes de DNA que dão às células funções completamente novas.
Cada uma dessas possibilidades cria um leque enorme de aplicações na área da saúde, especialmente em condições que eram, até então, consideradas incuráveis ou de difícil tratamento, como câncer e doenças genéticas hereditárias. Há uma estimativa de que existam mais de 10 mil diferentes doenças genéticas causadas por alterações em um único gene — também conhecidas como doenças monogênicas. Juntas, essas enfermidades atingem de 1% a 6% da população. A boa notícia é que, em princípio, todas podem ser alvo de tratamento através de tecnologias de edição gênica.
Dentre as enfermidades, a anemia falciforme se destaca por ser uma das doenças genéticas de maior prevalência, afetando majoritariamente a população afrodescendente, induzindo altos graus de morbidade e mortalidade precoce.
A condição é causada pela alteração de uma única letra de DNA no gene da betaglobina — um componente da hemoglobina, molécula presente nos glóbulos vermelhos do sangue e responsável pelo transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos. Curiosamente, em praticamente todos os pacientes, a alteração do DNA é exatamente a mesma, fato que não é muito comum em doenças genéticas. Portanto, não é por acaso que a anemia falciforme tem sido um dos principais alvos de pesquisa em terapia gênica.
A empresa Vertex Therapeutics anunciou recentemente que sete pacientes com anemia falciforme tratados com seu produto de terapia gênica deixaram de apresentar crises vaso-oclusivas, um importante marcador de gravidade. Mais importante ainda para essa fase do estudo: nenhum dos pacientes apresentou efeitos colaterais graves relacionados ao tratamento, o que sugere que o tratamento é seguro.
No Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein, em parceria com o Ministério da Saúde através do programa PROADI-SUS, também está buscando a cura para a anemia falciforme por meio da terapia gênica. A estratégia escolhida consiste em transplantar células-tronco hematopoiéticas (células capazes de gerar todos os tipos de células do sangue) do próprio paciente, após corrigir seu DNA no laboratório usando as técnicas de CRISPR/Cas9. Em fases iniciais de desenvolvimento, o protocolo tem se mostrado bastante eficaz em editar o DNA, possibilitando que essas células se transformem em glóbulos vermelhos saudáveis.
O desafio de levar a terapia gênica das bancadas dos laboratórios para os pacientes não é pequeno. Universidades, centros de pesquisa, startups e grandes empresas de diversos países estão reunindo times de especialistas e investindo somas importantes para desenvolver estratégias de tratamento utilizando essa tecnologia.
Os protocolos dos estudos, após o desenvolvimento em laboratórios de pesquisa, precisam ser testados e validados em exaustão em ambientes de manufatura adequados e escala compatível para o uso em humanos. Tudo isso para garantir a segurança do procedimento e sua qualidade. Na sequência, ensaios clínicos precisam ser feitos de forma minuciosa e cuidadosa, a fim de avaliar a eficácia e segurança desse tratamento em seres humanos.
O caminho é árduo e longo, com diversas idas e vindas. Exige resiliência, paciência, dedicação e muito investimento. Nos próximos anos, com o avanço das pesquisas e dos ensaios clínicos em diversas doenças, teremos mais clareza se a terapia gênica entregará, de fato, a revolução que ela hoje promete. O começo desta jornada, no entanto, não poderia ser mais animador!
Ricardo Weinlich é biólogo e pesquisador científico. Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa. Hospital Israelita Albert Einstein.
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