As Avós criaram, em 1977, uma associação apenas para buscar os netos, ou seja, os filhos desses desaparecidos que teriam nascido em cativeiro
Em 03/08/23 19:05
por Coluna da Sylvia
Sylvia Colombo nasceu em São Paulo. Foi editora da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e atuou como correspondente em países como Reino Unido, Colômbia e Argentina. Escreveu colunas para o New York Times em Espanhol, o Washington Post em Espanhol, e integra os podcasts Xadrez Verbal e Podcast Americas. Entrevistou a vários presidentes da regão. Em 2014, participou do programa da Knight Wallace para jornalistas na Universidade de Michigan. É autora do "Ano Da Cólera", pela editora Rocco, sobre as manifestações de 2019 em vários países da regiõa. Vive entre São Paulo e Buenos Aires, enquanto viaja e explora outros países da Latam
Estela de Carlotto | Foto: Divulgação
Poucas coisas são tão gratificantes, na Argentina, quanto o encontro de um neto por parte das Avós da Praça de Maio. Paralelamente à luta das Mães da Praça de Maio, que até hoje buscam os filhos desaparecidos durante a ditadura militar (1976-1983), as Avós criaram, em 1977, uma associação apenas para buscar os netos, ou seja, os filhos desses desaparecidos que teriam nascido em cativeiro. O cálculo é de que 500 bebês vieram ao mundo nos centros clandestinos de detenção.
Enquanto a maioria de seus pais e mães foram assassinados pela repressão, tornou-se uma prática comum que as crianças fossem poupadas. Porém, em vez de serem entregues a familiares, os militares se apropriaram desses bebês, entregando-os, com outra identidade, a amigos e parentes de militares, imaginando que, deste modo, jamais conheceriam sua origem.
Se no início a associação contava com dezenas de avós, estas vêm perdendo para o tempo seus principais membros fundadores. Uma delas ainda resiste, se trata de Estela de Carlotto. Depois de recuperar mais de 100 netos, ela, enfim, encontrou o seu, Ignacio de Carlotto, que havia sido entregue a uma família no campo, que o criou e que ele considerava seus pais até os 30 anos.
Carlotto ainda é das mais ativas, mas muitas das Avós Fundadoras estão envelhecendo e afastando-se da luta, ou mesmo morrendo. Mesmo que essa geração a partir de algum momento não possa mais fazer as buscas, elas certamente continuarão a ser feitas. Aos poucos, vêm assumindo a associação netos recuperados e militantes de direitos humanos.
Foi a pedido das Avós que se construiu um banco de dados genético único no mundo, que é capaz de identificar uma pessoa sem ter o material dos pais, mas sim das avós ou mesmo de primos.
Qualquer pessoa que tenha nascido nos anos 1970 e 1980 e tenha alguma desconfiança de ser um neto apropriado, tem o direito de fazer o teste. Em caso de o resultado dar positivo, as Avós proporcionam a divulgação, não sem antes realizar um trabalho com a ajuda de advogados e psicólogos que preparam a nova documentação da pessoa e a orientam a lidar com suas emoções nesta nova situação.
Mais uma alegria desse tipo ocorreu na semana passada, quando anunciaram a recuperação do neto 133, filho de Cristina Navajas e Julio Santucho. Ele é neto de uma das fundadoras da Associação, Nélida Navajas, que morreu em 2012 e não pôde conhecer o neto perdido. Na ocasião do anúncio, Mario Santucho, o irmão do neto encontrado afirmou: “Meu primeiro pensamento foi e sempre vai ser, para minha mãe e para a minha avó, porque elas nunca deixaram de lutar para nos encontrar e não estaríamos aqui sem elas.”
Hoje o trabalho das Avós e das Mães é reconhecido dentro e fora da Argentina, suas fundadoras andaram pelo mundo dando palestras e recebendo prêmios. Mas não foi assim sempre. No início de suas buscas, Mães e Avós compartilhavam um preconceito da elite argentina, eram chamadas de “Loucas da Praça de Maio” e, durante todo o tempo que durou a ditadura, não tinham presença ou voz nos meios de comunicação argentinos.
A história do neto 133 é como a de tantos outros. Tendo sido apropriado por um integrante das Forças de Segurança casado com uma enfermeira em 24 de marzo de 1977, afirmou que desde jovem teve dúvidas sobre sua identidade. Foi criado como filho único, com uma irmã vinte anos mais velha que já não vivia com a família. Foi ela que, um dia, contou ao caçula que ele não era filho biológico daquele casal. O rapaz, então, confrontou o pai adotivo duas vezes, mas nas duas recebeu a resposta de que ele, sim, era seu pai biológico. Inconformado com a resposta, o rapaz entrou, então, em contato com as Avós, fez teste de DNA, que foi comparado com a base de dados genéticos e teve sua identidade confirmada em 26 de julho último.
É normal que os netos encontrados não saiam à luz logo de cara, há todo um trabalho de reconstrução da história verdadeira, contatos com os pais adotivos e até a emissão de novos documentos, do DNI (o RG argentino) ao passaporte. A mãe morreu no centro clandestino em que deu à luz ao neto 133, o pai, escapou para o exílio. No dia do anúncio, seu pai, Julio Santucho, tinha lágrimas nos olhos. “É uma vitória da democracia e uma derrota da ditadura, porque eles quiseram roubar nossos filhos e os estamos recuperando”.
Ao entregar essas crianças para adoção, os militares não pareciam desconfiar de que essa mentira teria pernas curtas. Muita luta, muita pesquisa e investigação, fazem reviver uma geração inteira que tinha tido sua identidade roubada. É dos poucos assuntos que unem a sociedade argentina. A cada descoberta de um neto, o país chora de emoção. E aqueles que maquinaram a ditadura recebem essa dura e merecida resposta da história.
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