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EXÉRCITO

Multiplicar as armas é dar tiro no pé

É preciso seguir batendo nessa tecla: armar a população não ajuda a diminuir a violência urbana

Em 28/01/24 21:28
por Conversas com Cid

Cid de Queiroz Benjamin é um jornalista e político brasileiro. Nos anos 1960 e 1970, militou na luta armada, tendo sido dirigente do movimento estudantil em 1968 e integrante da resistência à ditadura militar, responsável pelo setor armado do Movimento Revolucionário Oito de Outubro.

Foto: Herick Pereira/TJAM

Um sério equívoco precisa ser combatido: ao contrário do que afirmam bolsonaristas, milicianos e afins, mais armas por aí na sociedade não trazem mais segurança. Ao contrário. Multiplicar as armas é dar um tiro no pé. E muitas vezes elas acabam nas mãos de bandidos.

Vale um exemplo: no início da década de 1990, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, um certo capitão do Exército foi rendido por dois adolescentes armados, que o obrigaram a entregar a moto e a pistola. Docilmente, ele preferiu não reagir. Foi sensato.

Mas, por que voltar a esse assunto agora, mais de 20 anos depois do episódio? Porque é preciso seguir batendo nessa tecla: armar a população não ajuda a diminuir a violência urbana. Para começar, se as pessoas tiverem armas ao alcance das mãos, qualquer acidente de trânsito, caso fútil de ciúmes ou problema entre vizinhos pode levar à morte de um envolvido. E o fato de os envolvidos terem preparo militar não é garantia de coisa alguma.

Basta ver o exemplo do prudente capitão lembrado acima, que preferiu não contrariar os dois bandidinhos para não pôr a vida em risco. E não pode ser criticado por isso.

Pois bem, na semana passada, por meio de uma portaria do Comando do Exército, o governo abriu as portas para um significativo aumento da quantidade de armas em circulação. Cada policial militar (e eles são mais de 406 mil em todo o Brasil) poderá comprar até mais seis armas de fogo para uso particular, além das que já tenha em casa, que serão automaticamente legalizadas. As armas poderão ser compradas no atacado, no varejo e até no exterior. Mais grave ainda: cinco dessas armas podem ser fuzis, que são armas de guerra.

Ora, para que alguém vai ter todo esse arsenal em casa? Que controle haverá sobre ele, garantindo que não caia em mãos erradas? E os compradores não correm o risco de ficar sem munição. A portaria estabelece que poderão a cada ano adquirir até 600 balas por arma.

Para que se veja a gravidade da medida, basta lembrar que a letalidade de um fuzil de calibre 7.62 (o mais comum) alcança até 2.500 metros. É uma piada achar que uma arma dessas vai ser usada para defesa pessoal ou para a proteção de alguma residência.

Vale lembrar as consequências de um tiro de fuzil. Um dos diretores de um hospital da Rede D’Or São Luiz, o cirurgião toráxico Rodrigo Gavina, lembrou em reportagem publicada no jornal “O Globo” (26/6/2023) que nove entre dez vítimas de um disparo morrem no local. E 90% dos que sobrevivem é porque foram atingidos apenas num braço ou numa perna, e não no tronco. Mas, “como são lesões ósseas e nervosas importantes, muitas vezes o membro é esfacelado(…). Aí, a única solução para manter a pessoa viva é (…) a amputação”, disse ele.

A portaria do Exército estende a autorização para as compras a funcionários da Agência Brasileira de Informações (Abin) e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). E — pasmem! — a estende também a bombeiros, que no País são 55 mil. Aqui, vale um registro: por incrível que pareça, no Brasil bombeiros têm porte de armas de fogo. Não me perguntem a razão disso, pois não vão combater incêndios com tiros.

A verdadeira explicação é outra: tendo porte de armas, bombeiros conseguem mais facilmente colocação como seguranças privados, um emprego que, no caso deles, é ilegal. E, por trás disso há coisa pior: um número expresso de bombeiros está vinculado às milícias.

Que essa portaria fosse assinada no governo Bolsonaro, se poderia compreender. Afinal o capitão defende armamento generalizado da população, mesmo que isso traga o risco de perder a arma para qualquer ladrãozinho pé-de-chinelo, como aconteceu com ele próprio.

Mas como justificar a medida no governo Lula?

Ora, sabe-se que alguns militares de alto coturno têm relações estreitas com fábricas de armas, tanto nacionais, como estrangeiras, e alguns são seus lobistas. Será que a portaria se deve a isso? Não é de se afastar a hipótese.

É verdade que o ministro da Defesa, Múcio Monteiro, mais do que integrante de um governo civil à frente das Forças Armadas, é preposto dos militares. Mas ouso pensar que, até mesmo, generais sensatos são refratários à medida estabelecida pela portaria, tão absurda ela é.

Por isso, o título deste artigo não exagera ao afirmar: multiplicar as armas é dar um tiro no pé.

O governo Lula está devendo uma explicação para a portaria. E não vale se esconder atrás dos militares. Afinal, eles são — ou deveriam ser — subordinados ao presidente da República.


Atualização 29/01/24: Em seguida à publicação do artigo acima, o Exército decidiu suspender a portaria que autorizava que policiais militares e bombeiros tivessem até cinco fuzis para uso particular, “para permitir tratativas junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública”. Melhor assim…

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