George Orwell alertou, no século passado, para as distorções na linguagem política para a defesa do indefensável. No entanto, o autor não imaginou a degradação do discurso político na defesa nua e crua da brutalidade
por Creomar de Souza em 15/07/21 11:56
Em um ensaio de 1946, intitulado “A Política e a Língua Inglesa”, George Orwell afirmou que o discurso político consistia na defesa do indefensável. A continuidade do controle britânico da Índia, os expurgos e deportações na Rússia, o bombardeio atômico no Japão poderia em tese ser defendidos, mas, para Orwell, somente com argumento por demais brutais para serem encarados de frente pelas pessoas. Por isso, a linguagem política, ao tentar tornar palatável o que de outra maneira seria intragável, empregava largamente o eufemismo.
A fraseologia permitia promover políticas questionáveis sem constrangimento. Vilarejos arrasados com bombas incendiárias? Chame isso de pacificação. Camponeses roubados de suas terras e deslocados sem ter para onde ir? Chame isso de transferência de população e retificação de fronteiras. Pessoas presas sem direito a julgamento ou enviadas para morrer em campo de trabalho forçado? Isso pode ser chamado de eliminação de elementos indesejáveis.
As palavras de Orwell possuem ainda atualidade, porém não exatamente como o autor talvez fosse capaz de antecipar. A diferença hoje, inimaginável nos anos 1940, é que estamos deixando de lado os pruridos e adotando, muitas vezes, a defesa nua e crua dos argumentos brutais, que passam a ser tragados sem qualquer dificuldade. Quando se quer evitar o argumento brutal de forma direta, usa-se cada vez mais o deboche no lugar do eufemismo. É o caso da defesa da eliminação, sem direito a julgamento, de suspeitos e criminosos, que passou a ser chamada em certos círculos de “cancelamento de CPF”.
Talvez Orwell tenha tido a ilusão de que, ao desmascarar a linguagem vaga, ambígua e eufemística, os receptores das mensagens não suportariam a brutalidade dos fatos, o que teria um efeito liberador e de transformação. Após o trauma da Segunda Guerra, ele provavelmente não conseguiria imaginar uma sociedade que não se escandalizaria com o uso do deboche ou da defesa aberta de métodos bárbaros: da eliminação física e simbólica de opositores à adoção do negacionismo, da rejeição da ciência ao endosso de práticas que colocam em risco a vida das pessoas em meio a uma pandemia.
Se, na época de Orwell, a linguagem política tinha de usar expedientes para mascarar a defesa do indefensável, hoje parece que algumas sociedades – como a nossa – normalizaram, em grande medida, o indefensável, a ponto de encará-lo sem artifícios de apaziguamento da consciência, aceitando-o não apenas como um fato da vida, mas como um objetivo de vida. Se a hipocrisia era a homenagem que o vício prestava à virtude, hoje o vício tem livre curso em seu afã desabrido por ditar os rumos de nossa política, com amplo apoio de estratos brutificados da sociedade, explodindo qualquer resquício de virtude que porventura encontrasse pelo caminho.
De certa forma, a crítica orwelliana pode até parecer ingênua e risível numa época de regressão e colapso de padrões civilizatórios. A linguagem política, despida do eufemismo e da vagueza, assumiu seu caráter brutal sob o aplauso de uma claque que perdeu a vergonha de promover o racismo e a necropolítica, deixando o rastro de jovens negros pobres mutilados e mortos em nossas periferias, mais de 500 mil cadáveres de uma pandemia que não passaria de uma “gripezinha”, instituições de Estado se vergando diante de avanços antidemocráticos, grupos políticos trocando apoio no Congresso por benesses de maneira escancarada.
No lugar de hipocrisia da época de Orwell, temos hoje não uma linguagem política que desmistifica a opressão para promover a justiça e a solidariedade. Estamos no pior dos mundos. Sem os eufemismos de então, a linguagem política assumiu o deboche e a crueza como seu léxico e sua gramática, promovendo a exclusão e a injustiça de maneira aberta, desavergonhada. Ou recuperamos a capacidade de nos indignar diante da barbárie ou teremos de aceitar, resignadamente, a viver num país distópico, não o que existe na literatura, mas o real, feito de famílias destroçadas, desigualdade pornográfica e injustiças viscerais.
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