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Pazuello livre

Juliano Cortinhas: Bolsonaro e a destruição de mitos sobre os militares

Os militares não são defensores da democracia e agentes passivos de um projeto de rompimento institucional promovido por Bolsonaro

por Juliano Cortinhas em 14/06/21 12:49

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, a população brasileira voltou a ter militares tomando grande parte das decisões sobre sua vida. Em determinado momento, o Brasil chegou a ter mais ministros militares do que a Venezuela, país que os próprios apoiadores do presidente viam como exemplo do que deveria ser evitado. Com a pandemia da COVID-19, até a saúde pública dos brasileiros foi submetida ao controle da caserna.

O problema disso é que a participação dos militares na política ameaça a democracia. Desde o início de sua carreira, eles são treinados para dar ou cumprir ordens, dependendo do nível hierárquico. No mundo militar, é preciso estar pronto para arriscar a vida e, por isso, a hierarquia e a disciplina deveriam ser valores inegociáveis. Como afirmou o então ministro Pazuello, “é simples assim, um manda e o outro obedece”. O fundamento da política, por outro lado, é o embate constante entre diferentes visões sobre a melhor forma de resolver os problemas do país. O ambiente da política e o militar são inconciliáveis.

Diante da grande presença de cidadãos armados em nosso governo e de pressões do próprio presidente sobre as instituições, cresceu a discussão sobre o quão próximos estamos de um possível golpe, com ou sem Bolsonaro. Apesar de não haver consenso a respeito, a participação dos militares no atual governo está servindo, ao menos, para desconstruir três mitos sobre eles (e aqui vale lembrar que os “mitos” constroem narrativas que estão distantes da realidade).

Em primeiro lugar, militares não são mais competentes que civis. Levando-se em consideração que a defesa contra ameaças externas é sua principal função, comparações entre as forças armadas brasileiras e estrangeiras demonstram nossa grande vulnerabilidade. Um exemplo: as marinhas francesa e britânica têm menos de 40 mil militares e mais de 30 meios principais (submarinos de propulsão nuclear, porta aviões, destroyers e fragatas). A Marinha Brasileira, de acordo com o Military Balance, possui apenas 5 submarinos (todos convencionais) e 8 fragatas, números irrisórios para o tamanho do nosso mar territorial. Para operar esses poucos equipamentos, mantemos o absurdo contingente de 85 mil militares. Realidades semelhantes se repetem no Exército e na Aeronáutica: nossas três forças armadas não podem ser consideradas competentes, pois são inadequadas para exercer sua função principal por falta de planejamento e foco na missão. Perceba, caro(a) leitor(a), que estou medindo a incapacidade dos militares em seu próprio campo de atuação. Nem é preciso, portanto, entrar no mérito do que fizeram na saúde e em outras áreas em que se mostram totalmente despreparados.

Em segundo lugar, militares não são mais honestos que civis. Desde 2018, vêm sendo trazidas à tona várias denúncias de recebimento de propinas, concessão ilícita de registros de armamentos (vide a Operação Cricket), superfaturamentos (como na compra de 700 toneladas de picanha e milhares de litros de cerveja), entre muitos outros casos de ilicitudes. Vivemos em uma sociedade em que os níveis de corrupção são muito elevados e os militares fazem parte dessa realidade.

Por fim, os militares não são defensores da democracia e agentes passivos de um projeto de rompimento institucional promovido por Bolsonaro. Ao contrário, são protagonistas desse processo, ao qual decidiram aderir em troca de benefícios pessoais: reforma previdenciária amplamente favorável, aumento do salário em todos os níveis (com supersalários para a alta cúpula) e mais de 6.000 cargos públicos, entre outros. Os benefícios são pessoais, mas o custo é pago pela instituição. Ao entrar nos quartéis, a política corrompeu a disciplina e a hierarquia, que mostram sua pior faceta: as forças armadas, enquanto instituições, aderiram acriticamente a um projeto que já matou quase 500 mil brasileiros. Nos quartéis, quem apoia Bolsonaro é premiado; quem o contesta, é punido.

A decisão recente de não punir Pazuello, general da ativa, somente comprovou o que já se imaginava: os militares não se afastaram de Bolsonaro. Estão, ao contrário, cada vez mais comprometidos com o projeto atual, o que ainda não foi percebido somente por uma parte da mídia que trabalha a partir de informações “vazadas” pelos próprios militares e que, coincidentemente, atendem aos seus interesses.

O que se observa por uma análise cuidadosa do cenário atual é que, como outros agentes políticos brasileiros, os militares não estão preocupados com o que é bom para o país, mas permanecem concentrados em si próprios e em suas carreiras. O custo é alto, tanto para as instituições militares (as forças armadas estão com a popularidade em forte queda) quanto para o Estado democrático de direito. Para quem se preocupa com o tema, a esperança é que essa aventura traga, ao fim, consequências positivas. Apesar de essa não ser a tendência atual, e mantendo a expectativa de que a democracia brasileira sobreviva aos testes da atualidade, espera-se que finalmente seja realizada uma reestruturação ampla e profunda da estrutura de defesa do país. Tal reforma deve ter dois objetivos centrais: a profissionalização das forças armadas e sua retirada total e definitiva do cenário político, o que nunca ocorreu no Brasil.


Quem é Juliano Cortinhas?

Juliano Cortinhas é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI/UnB).

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