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Francisco Saboya

A internet possível

Quebrar o poder dos monopólios globais das bigtechs na internet é uma das condições de sobrevivência da economia de mercado e da própria democracia

por Francisco Saboya em 17/02/21 12:20

A Internet é um daqueles mecanismos imperfeitos de um sistema maravilhosamente imperfeito chamado democracia. Por muito tempo, a sociedade consumiu passivamente conteúdos da mídia tradicional, um complexo concentrado de dinheiro e poder a serviço da visão de mundo das classes dominantes (sim, elas existem).

A Internet era uma miragem. Com sua chegada, porém, todo mundo agora podia opinar e ser ouvido sobre qualquer coisa. Sem intermediários. A Internet era libertária, a nova Ágora, o sonho da democracia direta. Nada podia estar mais próximo do ideal de cooperação e fraternidade global.

Internet revolucionou o modo de se comunicar do mundo e também virou espaço de discussão política.
Internet revolucionou o modo de se comunicar do mundo e também virou espaço de discussão política. Foto: Pixabay (Reprodução).

Mas o idílio durou pouco e o tempo logo deu razão a Umberto Eco. Numa visão sagaz – tida por alguns como preconceituosa – o pensador afirmou que a Internet “deu voz a uma legião de imbecis”. E como eles são muitos, lembrava Nelson Rodrigues, o problema tá instalado. Imbecis não dialogam, escarram insultos. Não têm dúvidas – domínio da filosofia -, apenas verdades absolutas. E como também não têm tempo a perder com leitura e estudo, consomem de primeira qualquer notícia e se tornam involuntariamente vetores de desinformação, espalhando fake news com a mesma velocidade com que negam o óbvio ululante. E por serem tantos, tomaram a Internet de assalto: ela agora é sua mídia, o canal por onde escoam suas verdades. Zerou o jogo.

Monopólios

Mas isso é apenas uma parte do problema. A Internet também foi capturada pelas grandes corporações e, mais recentemente, por seitas políticas. Seja em redes sociais, mecanismos de busca, sites de e-commerce, tudo parece descarrilhado. Em paralelo ao reconhecimento dos incontáveis benefícios para todos, cresce a desconfiança de que a Internet é predominantemente uma plataforma de criação de valor para muito poucos.

O que fazer então? Aperfeiçoá-la. Essa discussão é recorrente e veio à tona mais recentemente com a decisão do Twitter e outras plataformas de excluir o ex-presidente Trump de sua lista de usuários. Três questões devem ser abordadas aí: organização de mercado, censura e curadoria.

Quanto à organização de mercado, trata-se de uma questão conceitual. O sistema capitalista idealizado pelos teóricos liberais seria virtuoso entre outras razões por permitir a livre concorrência. O ideal não resiste à cinco minutos de realidade, e o que predomina são mercados oligopolizados ou mesmo monopolistas. Esta, aliás, é uma característica da economia da informação. Varian e Shapiro (Information Rules, 1999) apontam um atributo singular dos novos arranjos econômicos. Diferentemente da economia industrial clássica, onde se extraía competitividade da escala de produção, na nova economia ela vem da escala de demanda. Ninguém quer ficar de fora da festa ou falando uma língua que ninguém entende. A disputa é portanto por padrões tecnológicos. Aquele que ganhar leva tudo. O objeto de negócios adquire uma dimensão simbólica, e o marketshare perde espaço para o mindshare.

Esse traço da economia digital nos levou aos monopólios indesejados das grandes plataformas como Google, por onde passa cerca de 90% dos fluxos de busca por conteúdos na Internet, totalizando algo como 4 bilhões de buscas/dia. Só Google sabe o que o mundo está pensando. Ou Facebook, onde estão pendurados quase 3 bilhões de usuários ativos mensais. Só Facebook sabe o que o mundo anda compartilhando, e por conseguinte, o que a sociedade em escala global prioriza no seu dia-a-dia. Ou Amazon e AliBaba, que sabem como ninguém quem, porque e o que o mundo está comprando. Com essa base gigantesca de dados em mãos e a capacidade de desenvolver algoritmos inteligentes combinados com inovações tecnológicas contínuas e modelos de negócios efetivos, as bigtechs se tornaram empreendimentos mais relevantes do que a maioria dos governos nacionais.

Qual o limite socialmente desejável para essas corporações? Muita gente aposta na LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e equivalentes como freio. Elas são sem dúvida um avanço no trato dos dados pessoais, mas ainda estão longe de reduzir o poder discricionário das plataformas. O fato é que leis e governos estão sempre pelo menos dez anos atrasados em relação ao mercado, e a capacidade de fazer o bem ou o mal, seja lá o que isso signifique, está hoje nas mãos dos CEOs. Isso é uma falha sistêmica do mundo digital. Daí porque o bloqueio imposto a políticos farsantes, mesmo em condições extremas, deve ser comemorado com cautela.

No princípio, qualquer ideia de intervir na Internet parecia (e para muitos ainda parece) um ato autoritário. A Internet era libertária, já foi dito. Mas já é hora de reconsiderar a questão. A vasta gama de serviços e benefícios on line providos aos usuários não justifica o laissez-faire de que desfrutam as grandes corporações. Simplesmente não dá pra terceirizar para o Vale do Silício a condição de Tribunal Global da Democracia. Hoje foi Trump. Amanhã pode ser o Green Peace, por exemplo.

A questão é complexa e a saída está não na tecnologia, mas na política. Numa política exercida de forma inovadora, por meio de uma grande aliança global entre governos, empresas, ONGs e outras  representações da sociedade, incluindo aí as redes digitais de pessoas e negócios. A política é trabalhosa e lenta, mas é ela quem influencia e faz as leis, além de ser o espaço de mediação de conflitos sociais e de diálogo entre partes interessadas.

Alguns pontos devem fazer parte da nova agenda. Um exemplo: quebrar o poder dos monopólios globais das bigtechs. Essa é uma condição de sobrevivência da economia de mercado e da própria democracia. Relatório de outubro de 2020 do Congresso Americano propõe impressionantes 449 medidas para combater esse quadro. Elizabeth Warren, senadora pelos EUA, advoga pelo desmembramento dos grandes trustes. Na Europa, a discussão vai nessa mesma direção.

Parece claro que os mecanismos atuais falharam quando, por exemplo, consentiram na aquisição de Instagram e WhatsApp por Facebook, ou YouTube e Waze por Google. Startups são por definição ameaças aos incumbentes e promessas de mais concorrência. Mas quando elas são compradas no nascedouro, apenas reforçam a condição monopolista das adquirentes. Esse é outro ponto da nova agenda.

Ao lado da reorganização dos mercados de serviços digitais, apontamos mais acima a necessidade de se discutir também a função de curadoria na Internet (não confundir com censura), em especial de conteúdos em redes sociais. Alguém já deve estar resmungando aí: ôps, impossível! Trata-se realmente de uma questão de difícil operacionalização. Por limitações de espaço, esse tema ficará para a coluna da próxima semana.

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