Sob pretexto de preservar a liberdade de opinião, a ala mais antidemocrática da política nacional deseja um passe livre para a mentira
por Francisco Saboya em 16/02/21 12:50
Atribui-se a Ésquilo, ao senador americano Hiram Johnson, até a Churchill eu já vi aqui pela internet, a frase de que numa guerra a primeira vítima é a verdade. Não importa a autoria. A frase é boa demais para ser desperdiçada. O que importa é emplacar a sua narrativa antes que outros o façam. Como as redes sociais são um verdadeiro campo de batalha, vale o dito de origem disputada. Aquela esperança de uma rede mundial de fraternidade entre pessoas foi pro espaço. E a verdade foi junto com ela. A fase ingênua ficou pra trás, e hoje as redes sociais mal servem para reconectar amigos antigos, marcar encontros, compartilhar fotos dos filhos, dos pets e daqueles pratos desajeitados de restaurantes da farra de ontem [fotografar comida é uma arte].
No ambiente hostil em que se transformaram, não sobra mais muito espaço para diálogo. As redes sociais foram capturadas pela infantaria do ódio à serviço do extremismo ideológico com a ajuda de robôs e de algoritmos de retenção de audiência alegremente disponibilizados pelos grandes provedores de serviços. A dinâmica das redes ajudou a cristalizar grupos de interesse antagônicos que se fecham, se protegem e se preservam como feudos. Os novos suseranos digitais articulam sua rede de vassalagem entre recalcados e paranoicos dispostos a viver em bolhas-feudos e empreender uma guerra santa sem fim contra a civilização moderna, disparando posts, tweets e memes carregados de inverdades e desinformação. A Internet das redes sociais é uma idade média sem cavaleiros, mas com cavalos de sobra.
Voltando ao tema, semana passada o país se deu conta de que tem agentes públicos (ministros, deputados, desembargadores…) defendendo a legitimação da mentira nas redes sociais. Isso mesmo. Numa ação coordenada e ágil em resposta ao banimento de Trump e também de blogs nativos, e sentindo a ameaça que isso representa para a sustentabilidade, inclusive financeira, de seus canais-bolhas na mídia digital, esses agentes abriram duas frentes para enquadrar as bigtechs.
Uma no plano internacional, conduzida pelo Itamaraty – pegando carona em um processo que aliás já está em curso na Comissão Europeia e outros fóruns – e outra no plano interno, através de movimento articulado por parlamentares da chamada ala ideológica do PSL. A primeira tende a dar em nada. Os protagonistas brasileiros não possuem credibilidade nesses fóruns e suas posições devem ser ignoradas. Já a segunda pode dar em algo, devido ao maior alinhamento da atual mesa diretora da Câmara dos Deputados com o governo federal, patrono das iniciativas.
Mas o que esses projetos propõem exatamente? Eles visam basicamente proibir a remoção, por parte dos provedores, de postagens consideradas falsas, hostis, preconceituosas, sediciosas, antidemocráticas. Vai além, e veda até mesmo a moderação de conteúdos através da rotulação, mecanismo que alerta para o risco do consumo daquela informação, feito cigarro e bebida.
É uma proposição insidiosa, partindo de quem vem. Sob pretexto de preservar a liberdade de opinião – condição inegociável nas democracias modernas – a ala mais antidemocrática da política nacional deseja um passe livre para a mentira e, através de sua legitimação, golpear as instituições que dificultam seu projeto autoritário. (Aqui um parênteses: ainda ontem, o presidente da República apresentou uma solução simples e “democrática” para a questão das fake news: fechar os veículos de imprensa, que, em sua opinião livremente manifesta, são seus principais propagadores).
Negar a verdade factual é apenas mentir. Simples. E não deve se confundir com discordar ou ter opinião divergente dos outros e defendê-la de maneira aberta. Um conteúdo sabidamente falso deve ser removido. Um conteúdo duvidoso, sinalizado. Um propagador contumaz de mentiras, banido das redes.
E não porque os grandes provedores podem fazer o que quiserem, já que são entes privados. Esse raciocínio é equivocado, pois a natureza das atividades que exercem, seu alcance e impacto são de interesse público e, como tal, possuem uma função social que prevalece sobre qualquer outra. Trata-se de proteger a sociedade de uma legião que explora com competência as fendas da democracia para sufocá-la.
O que resta é uma sociedade na encruzilhada. Conhecimento e velocidade são os recursos mais valiosos na nova sociedade e base para estratégias exitosas. Esperar pela justiça comum, com sua lerdeza proverbial, pode ser tarde demais. Deixar a decisão sobre o que pode ou não ser comunicado nas mãos das provedoras é uma aberração. A saída parece ser mesmo uma curadoria de conteúdos plural, como já foi falado aqui nesse espaço em colunas anteriores. Assim a gente foge do risco de ter que optar entre o cruzado Ernesto e o czar Zuck – que parecem igualmente se alimentar de conteúdos duvidosos – dizendo não ao direito de mentir.
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