Para professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, o Governo Federal adotou uma clara estratégia: deixar que a doença siga seu curso natural e se resolva sozinha
por Vitor Hugo Gonçalves em 02/02/21 19:03
No MyNews Entrevista, Juliana Causin conversou com Deisy Ventura, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), responsável por liderar uma pesquisa que mapeou e estruturou as medidas adotadas pelo Governo Federal frente à pandemia de Covid-19.
Ventura evidencia a implementação de propagandas contra a saúde pública por parte da figura presidencial, constatando um êxito governamental no planejamento de disseminação da doença em toda a extensão territorial brasileira.
Ao lado de outros pesquisadores da USP, da organização Conectas Direitos Humanos e do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário, a professora demonstrou que o Brasil não chegou à toa nesse patamar de agravamento da pandemia.
Municípios com o sistema de saúde em colapso, discursos que negam a ciência advindos de autoridades públicas e normas emitidas pelo Planalto são alguns dos fatores que impulsionaram o vírus no país.
Hoje, o Brasil ultrapassa os 220 mil mortos pela pandemia da Covid-19 e, tragicamente, se pergunta: o elevado número de óbitos é consequente da falta de planejamento ou, pelo contrário, da implementação de uma indecente estratégia?
Vocês começaram esse levantamento ainda em março de 2020, bem no início da pandemia. Como é que foi essa análise, para quais diretrizes do governo vocês estão olhando?
Começamos quando houve, no dia 6 de fevereiro, a promulgação da lei 13.979, que a gente chama de ‘Nova Lei da Quarentena’. Dizendo de uma forma bem simples, foram criadas as regras básicas para organizar a resposta à pandemia no Brasil – aqui a gente ainda tinha como ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. O Ministério da Saúde fez um texto básico que foi para o Congresso Nacional, com toda a pressa, e mesmo assim, naquelas poucas horas que essa lei ficou na Câmara, os parlamentares incluíram que a resposta à pandemia deveria obedecer os direitos humanos, as liberdades fundamentais, colocaram o dever de informação, de transparência… Ou seja, a gente se deu conta que em poucas horas o Congresso Nacional já tinha melhorado muito o texto vindo do poder Executivo, e esse texto também permitia a adoção de medidas restritivas de direito, como a quarentena por exemplo, que é um tema tão no Brasil, e nós nos demos conta do impacto que isso ia causar no ordenamento jurídico brasileiro.
Resumo: surgiu uma nova legislação e o poder Executivo, em todos os níveis, começou a produzir normas em um ritmo alucinante – hoje temos mais de 3 mil normas federais adotadas sobre a Covid-19. Assim, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, nós da Faculdade de Saúde Pública da USP, particularmente do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitários, resolvemos coletar as normas relacionadas à Covid-19 e avaliar o impacto delas sobre os direitos humanos. Estamos com uma equipe grande desde o ano passado (somos cinco coordenares, bolsistas, doutorandos, pós-doutorandos, mestrandos), e a gente tem publicado boletins que analisam grupos de normas específicas, além de trazer dados quantitativos gerais sobre a pandemia.
A impressão que dá acompanhando o decorrer da pandemia é que há uma série de informações e recomendações desencontradas – caracterizadas como estratégias do Governo Federal. Em relação ao governo, qual é a sua avaliação sobre todos esses documentos que vocês identificaram e analisaram?
Para ligar essa pergunta com o que eu falei antes sobre o estudo, eu posso te dar um exemplo que facilita muito a compreensão: no boletim com a linha do tempo do que nós chamamos de ‘estratégia institucional de disseminação do vírus’, não há nenhuma dúvida de que o Governo Federal tem a intenção de que a Covid-19 se propague o mais rapidamente no país. A gente demonstra essa intencionalidade com documentos oficiais, não há nenhuma interpretação nossa, não é entrevista, não há nenhum outro tipo de pesquisa empírica, pesquisa documental… são documentos públicos, oficiais, e declarações do presidente (que estão filmadas, transcritas, e são absolutamente inquestionáveis).
Mas, na verdade, fizemos essa linha do tempo, porque começamos a ver, particularmente a partir do final do ano passado, quando se viu as dificuldades de organizar a vacinação, e ainda mais quando a crise começou a se repetir em Manaus, um discurso de que o Governo Federal é incompetente, de que o presidente da República é louco, que ele faz bravata e provocação; colegas que a gente admira dizendo que existe negligência, omissões, do Governo Federal em relação à pandemia. Para a gente que passou o ano de 2020 lendo as normas e os documentos oficiais, porque também estudamos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União (muito importante, pois o Tribunal cobra do governo, e o governo se manifesta oficialmente no processo, oferecendo dados, posturas etc.), sabíamos que não era negligência, que não era loucura e que não era ineficiência.
O Governo Federal está cumprindo um objetivo claríssimo: ele quer que isso termine logo – como o próprio presidente da República diz […] diante dessa interpretação, que consideramos equivocada, de que o governo é incompetente e louco, sentimos a necessidade de colocar em perspectiva tudo aquilo que nós estávamos reunindo desde o ano passado.
Simplesmente sistematizamos as declarações do presidente, que chamamos de ‘propaganda contra a saúde pública’, os atos normativos e os atos de obstrução das respostas estaduais… Mostramos nessa linha do tempo que o Governo Federal nunca tentou esconder sua estratégia – e nesse sentido ele foi extremamente eficiente, conseguindo disseminar o vírus pelo Brasil.
Estamos agora com 220 mil mortes. Como toda essa desinformação e negacionismo confluíram para que o Brasil chegasse no nível de ser um dos países com mais mortes pela pandemia?
Um em cada dez indivíduos mortos pela Covid-19 no mundo é brasileiro. Isso é uma vergonha que fica para a história do Brasil, uma vergonha de todos nós brasileiros, porque o Governo Federal lidera a estratégia de disseminação do vírus. Existe resistência por parte de algumas instituições e entidades sociais, mas infelizmente ainda não existe um movimento massivo que questione essa estratégia, considerada pela Organização Mundial da Saúde como antiética, perigosa e ineficiente, que é a estratégia da imunidade coletiva, imunidade rebanho. É evidente no discurso do Governo Federal que é essa a meta: a doença deve seguir o seu curso natural e se resolver sozinha, mesmo que isso implique em um número grande de mortes, pois, no discurso do governo, morrer todos nós vamos. O erro de base do Brasil, então, é apostar no ‘deixa rolar’.
As pessoas pensam que estão criticando o presidente quando dizem que ele é chulo, ignorante, instável emocionalmente… as pessoas pensam que estão fazendo uma crítica a ele, mas elas não estão, porque a crítica importante é olhar o que ele faz. Olhando o que ele faz, saímos da intencionalidade subjetiva, que pode aparecer no discurso, e vemos que a intencionalidade prática corresponde diretamente a esse discurso. Há, então, uma propaganda contra a saúde pública, com o intuito de desacreditar as recomendações elementares (o presidente chegou a dizer que a máscara é o último tabu que vai cair).
Desacreditando essas recomendações, se incita a população a não respeitar as autoridades sanitárias (e nós vamos pagar muito caro, por muitas décadas, por esse descrédito) e a não respeitar as medidas quarentenárias (o próprio presidente causa aglomerações, não usa máscara e atua inclusive com a sua presença física para gerar situações de disseminação do vírus). Na nossa linha do tempo mostramos que os óbitos e casos vão subindo enquanto o presidente continua a aglomerar.
Nada demove essa estratégia, que é complementada com a defesa de tratamentos comprovadamente ineficazes, como a Cloroquina. Luiz Henrique Mandetta, no seu livro ‘Um paciente chamado Brasil’, ele não só explica claramente o momento em que o presidente deixou de escutá-lo e passou a ouvir ‘médicos bolsonaristas’ – mesmo ele sendo médico e bolsonarista – como também que o presidente jamais acreditou na Cloroquina, mas que dizia “com essa caixinha na mão o trabalhador vai voltar a trabalhar”. O próprio exército, quando responde ao Tribunal de Contas da União sobre um possível superfaturamento na compra de insumos para a produção da Cloroquina, falou em “dar esperança aos corações aflitos”.
A ideia é fazer com que as pessoas tenham coragem de se expor. Essa é a estratégia: atacar a saúde pública, oferecer uma alternativa, iludindo as pessoas com essa ideia de que existe um tratamento precoce, e a população continua trabalhando. Enquanto isso, os governos estaduais e municipais contêm a sobrecarga do sistema de saúde, assumindo integralmente o ônus da adoção de medidas antipáticas com grande impacto econômico.
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