Falecido em 2014, empresário teria mantido, durante décadas, um esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de exploração sexual
por Agência Pública em 15/04/21 20:52
Uma história de violência sexual na infância marcou para sempre a trajetória de Karina Lopes Carvalhal, hoje com 40 anos. Aos 9, ela soube pelas irmãs que um grande empresário de sua cidade natal, São Caetano do Sul (SP), dava dinheiro e presentes a crianças e adolescentes que fossem à sede da empresa na av. Conde Francisco Matarazzo, número 100. À época com 12 anos, a irmã mais velha de Karina avisou que poderia conseguir um tênis novo se fosse até lá. “Eu não tinha um tênis pra pôr, usava o das minhas irmãs, meus dedos eram todos tortos.”
Karina subiu até o andar da presidência e esperou até ser chamada ao escritório particular do dono. Ficou surpresa ao ver um senhor, já na casa dos 70 anos. “Minha irmã tinha me dito: ‘Ká, não se assuste porque ele vai te dar um beijinho’. Mas ele me cumprimentou e já passou a mão nos meus peitos. Ele dizia: ‘Ah, que moça bonita. Muito linda’”, relembra, imitando o sotaque polonês do empresário Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, uma grande rede do varejo brasileiro. Ela saiu levando consigo uma quantia em dinheiro e um tênis da marca Bical. Era 1989.
“A gente ficava contente que tinha ganhado um tênis. Não tínhamos noção dessa situação de violência”, avalia Karina ao falar com exclusividade à Agência Pública. A possibilidade de conseguir outros bens materiais a fez voltar nas semanas seguintes. “A segunda vez, ele já me levou pro quartinho.” Ela conta que o empresário mantinha um quarto anexo ao seu escritório, onde havia uma cama hospitalar. Era ali, segundo ela, que ocorriam os abusos.
Karina não teria sido a única a ser aliciada e explorada sexualmente por Samuel Klein. A Pública ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família.
A reportagem, que pode ser lida na íntegra no site da Pública, consultou também processos judiciais e inquéritos policiais e teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos na própria sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e no município de Angra dos Reis (RJ).
O empresário teria organizado um esquema de recrutamento e transporte de meninas, com uso de seus helicópteros particulares, até mesmo com a participação de funcionários na organização de festas e orgias, pagas com dinheiro e produtos de suas lojas.
A partir das denúncias mais recentes envolvendo o filho do patriarca da família Klein, o empresário Saul Klein, investigado pelo Ministério Público do Estado São Paulo (MP-SP) por aliciamento e estupro de dezenas de mulheres, a reportagem foi atrás do passado de Samuel e encontrou histórias semelhantes às práticas descritas pelo MP-SP na investigação sobre seu filho.
Samuel Klein morreu em 2014, deixando uma imagem quase heroica. Nascido na Polônia em 1923, perdeu a família em um campo de concentração. Emigrou para o Brasil na década de 1950, quando começou a vender produtos em uma charrete. Anos mais tarde, fundou a Casas Bahia, hoje parte do conglomerado Via Varejo, com faturamento médio anual de R$ 30 bilhões.
Mas “o rei do varejo”, como ficou conhecido, foi acusado por diversas mulheres de praticar abusos sexuais e de exploração de crianças e adolescentes. Um desses casos é o de Renata*, que afirma, em processo ao qual a Pública teve acesso, ter sido estuprada pelo empresário quando tinha 16 anos.
Renata contou à polícia que em outubro de 2008 foi à casa de praia do empresário em Angra dos Reis. “Ele me pegou a força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar”, diz um trecho do depoimento.
Na época, Samuel Klein reconheceu, em depoimento à Polícia Civil de São Paulo, que Renata e sua colega estiveram na casa dele em Angra dos Reis, mas disse que as moças não eram “menores de idade”. Renata não quis dar entrevista.
A Pública buscou, ao longo dos últimos meses, contato com 26 mulheres que moveram processos judiciais, além de outras que não o processaram. Dez mulheres concederam entrevistas, a maioria pediu para não revelar a identidade por medo de retaliação. Três entrevistadas, porém, concordaram em ter seu nome divulgados.
Segundo os relatos, após um primeiro contato, que frequentemente já incluía abusos sexuais, mulheres e meninas eram selecionadas para participar de festas do empresário nas suas propriedades, como os apartamentos em São Paulo, no edifício Universo Palace, em Santos (SP), na Ilha Porchat, em São Vicente (SP), uma casa em frente à praia da Enseada, em Guarujá (SP), além da mansão no Condomínio Porto Bracuhy, em Angra dos Reis.
As adolescentes geralmente eram aliciadas em bairros de baixa renda do entorno de suas propriedades e também vinham de vários estados. Uma das mulheres contou que, ainda adolescente, viajou várias vezes para a mansão e disponibilizou à Pública fotos das viagens. Ela aparece abraçada ao empresário em frente ao helicóptero Agusta A09 Power, pousado em Angra, em 1999. Segundo o registro da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o helicóptero fotografado havia sido registrado em nome da Casas Bahia em 1998.
Cláudia* tinha 20 anos quando participou pela primeira vez de um jantar com Samuel na sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, em 2008.
“Disseram que eu ia jantar e fazer companhia, carinho nele”, conta. Assim como outras vítimas relataram, o encontro teria ocorrido no andar da presidência da loja, e ela contou que foi orientada a dizer que tinha 17 anos para atender “o estilo de Samuel, que gostava mais de menininha”. “Ele gostava de meninas com o corpo menos evoluído, que era meu caso.”
Funcionários da Casas Bahia confirmaram os frequentes pagamentos em dinheiro e produtos às chamadas “samuquetes”, como eram apelidadas as “meninas do Samuel” — depoimentos confirmando a situação constam, inclusive, em condenações na Justiça do Trabalho.
Josilene*, que foi gerente numa loja da Casas Bahia na Vila Diva, zona leste de São Paulo, entre 2005 e 2008, contou à Pública que tanto Samuel quanto Saul Klein usavam o caixa das lojas como parte dos pagamentos dessas meninas e mulheres. Segundo ela, “as meninas tinham direito de escolher o que elas queriam na loja. Na época, como era menina nova, pegava muito celular, som, televisão”.
Em 2010, a Casas Bahia foi condenada em diversas ações trabalhistas. Em sete delas, os funcionários alegaram danos morais em razão de situações vexatórias vividas no trabalho. Eles descrevem que frequentemente tinham que pagar mulheres que apareciam nas lojas cobrando dinheiro e mercadoria e que, geralmente, traziam bilhetes com a letra de Samuel ordenando pagamentos.
“Parece que ele vivia para isso. Ele recebia meninas várias vezes por semana, o mês inteiro”, conta à Pública um segurança que trabalhou para a família Klein por 19 anos.
Os relatos das mulheres e de alguns ex-funcionários apontam para Lúcia Amélia Inácio, secretária pessoal que trabalhava na sede da Casas Bahia, como uma das principais organizadoras do suposto esquema. Lúcia é citada na biografia autorizada do empresário, escrita por Elias Awad, como “fiel enfermeira e responsável pelo departamento de benefícios” da Casas Bahia.
No relato das entrevistadas e de ex-funcionários, Lúcia é apontada como a responsável por convidar as meninas escolhidas por Samuel para as viagens, fazer pagamentos e doações de cestas básicas a mulheres e familiares e até participar de algumas das festas promovidas nos imóveis de Samuel. Depois de várias tentativas, a reportagem não conseguiu contato com Lúcia.
Os depoimentos de ao menos seis mulheres mencionam também Káthia Lemos como uma “aliciadora de meninas” do empresário. Ela aparece em fotos no iate e na piscina da casa de Samuel em Angra dos Reis e em um vídeo de uma festa de aniversário do empresário, que ocorreu em 11 de novembro de 1994 em uma casa em Guarujá. “Eu só posso agradecer especialmente a vocês três [indicando Káthia e outros dois seguranças] por fazer essa festa maravilhosa para 150 amigas minhas”, discursa Samuel na gravação.
Em conversa com a reportagem, Káthia negou que fizesse agenciamento de mulheres e meninas. Ela disse conhecer “mais de 100 mulheres, de vários estados brasileiros, que frequentavam os encontros” com o empresário, mas nega que houvesse menores de idade. “Algumas mentiam a idade dizendo ter 18 anos para agradá-lo. Era a fantasia dele.”
As entrevistas sugerem que Samuel aproveitava a situação vulnerável de famílias empobrecidas e se colocava como “benfeitor”, criando uma lógica que, ao misturar abusos e recompensas financeiras, prendia as vítimas ao esquema criminoso.
Itamar Gonçalves, gerente da Childhood, organização que atua na proteção à infância e à adolescência, explica que meninas exploradas sexualmente podem acabar introduzindo outras nos esquemas criminosos. “São estimuladas a trazerem a irmã, parentes, amigas e amigos para aumentar os ganhos”, explica. Nesses casos, as vítimas não podem ser responsabilizadas. “O papel do aliciador é do adulto que está se aproveitando da situação. Infelizmente, porque temos uma Justiça machista, a atuação de um adulto que se beneficia e/ou articula esse tipo de situação é muitas vezes normalizada.”
A pobreza e a vulnerabilidade social são os principais fatores que levam crianças e adolescentes para esquemas de exploração sexual, segundo a socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos infantojuvenis. “Existem ainda questões culturais, de contextos sociofamiliares, de situações de abandono — inclusive por parte de políticas públicas. São vários aspectos que confluem para a entrada precoce de meninos e meninas em situações de violência sexual”, analisa.
Discursos morais, preconceitos, machismo e falta de acolhimento silenciam vítimas de violência sexual, que muitas vezes são culpabilizadas enquanto seus agressores seguem impunes, diz Graça.
Na Justiça, nenhum procedimento para a responsabilização de Samuel Klein prosperou. Jorge Alexandre Calazans, advogado que representou quatro vítimas, conta que estabeleceu acordos entre os advogados do empresário e as mulheres que o procuraram. “O acordo foi feito rapidamente, elas receberam o dinheiro e extinguiram o processo de indenização que tinham aberto”, relata.
Outro advogado ouvido pela reportagem afirmou ter fechado um acordo judicial, com pacto de confidencialidade, com seis mulheres que alegaram abusos de Klein, todas menores de idade na época dos fatos. Já o escritório Aquino Ribeiro Advogados & Associados, localizado em Santos, representou seis casos de mulheres que teriam sido abusadas sexualmente por Klein no final da década de 1990. Os advogados do escritório receberam as denúncias apenas em 2011.
Cinco dos seis casos levados à Justiça pelo escritório tiveram a prescrição reconhecida porque, naquele momento, o prazo prescricional de 20 anos começava a correr a partir da maioridade da vítima. Mas, como o empresário tinha mais de 70 anos quando as mulheres foram em busca de reparação, o tempo para viabilizar o processo caiu pela metade, dez anos.
“Na cabeça da vítima, ela ainda fica pensando que ela pode ser culpada. Ela leva um tempo achando que a agressão, que o que ela passou, é culpa dela. Era isso que a gente queria: que ao menos tivesse uma perícia, um psicólogo ou psiquiatra que pudesse aferir por quais motivos elas não entraram na época com ação”, argumenta o advogado Antônio Sérgio de Aquino, que representa essas mulheres. Desses casos, apenas um ainda corre na Justiça, que aguarda análise dos recursos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Além de fotos das adolescentes nas propriedades de Klein e relatos de próprio punho das mulheres, os advogados instruíram os processos com base em um inquérito policial aberto contra Samuel Klein em 2006 — o que mais avançou em termos investigatórios.
A análise do inquérito traz a história de Bianca*, que relatou ter sido vítima de abusos sexuais e estupros cometidos por Samuel Klein quando tinha 13 anos, em 2001. O caso foi denunciado por ela em abril de 2006 ao Conselho Tutelar de Campina Grande (PB), onde passou a morar com sua mãe.
Em uma carta escrita de próprio punho, ela relata que o empresário tentava “acariciar” e “forçar de forma horrorizante”. “Estou aqui para denunciá-lo para que isso não venha acontecer com as demais jovens, que passaram e estão passando por isso e não tem coragem de fazer a denúncia, por medo e por constrangimento, igual eu tive”, escreveu.
Em 2011, o juiz Valdir Ricardo, da 1ª Vara de Justiça de Guarujá, julgou extinta a punibilidade de Samuel Klein no caso de Bianca e determinou o arquivamento do inquérito contra o empresário.
No caso, há o registro de uma tática recorrente da defesa de Klein: evitar a intimação, até o esgotamento do prazo, para as oitivas, que é o momento em que o ofendido pode ser ouvido no curso do inquérito.
A mesma estratégia foi observada no processo de Francielle Wolff Reis. Aos 14 anos, em 2008, ela foi convidada por uma conhecida para visitar o fundador da Casas Bahia. Conforme o relato, o empresário prometeu dinheiro se ela praticasse sexo com ele, à época com 85 anos.
Por um ano e meio, a menina teria frequentado o escritório de Samuel de duas a três vezes por semana. Em 2013, ela entrou com uma ação de indenização por danos morais contra Samuel. O processo de Francielle patinou por anos e o empresário faleceu sem ao menos ter sido citado pela Justiça. Em 2017, três anos após a morte do “rei do varejo”, uma oficial de justiça conseguiu enfim citar o herdeiro de Samuel, o filho mais velho, Michael Klein.
A ação ainda tramita na Justiça. Em fevereiro de 2021, a juíza do caso negou a indenização pedida por Francielle. Ela acatou os argumentos da defesa, de que Klein estava acamado desde 2006, estando impossibilitado de praticar os abusos denunciados.
Em março, os advogados de Francielle recorreram. O processo está em vias de ser analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Samuel Klein foi investigado também em um inquérito aberto em outubro de 2008 na Delegacia de Defesa da Mulher, em Santos. O caso virou uma ação penal que tramitou na 1ª Vara Criminal da cidade, e Samuel foi investigado por crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. O caso foi arquivado devido à morte do empresário, seis anos mais tarde.
A reportagem procurou Lúcia Amélia Inácio, apontada como secretária pessoal de Klein na Casas Bahia, que teria sido responsável pelo aliciamento e pagamento de meninas — segundo as denúncias. Buscamos contato em quatro telefones diferentes, na portaria de sua residência e notificando o interesse em ouvi-la. Até a publicação desta reportagem, não recebemos nenhum retorno.
Também foi procurado o escritório Faria Advogados e Consultores de Empresas, que já representou Samuel Klein quando ele era vivo e no espólio do patriarca, em processos de indenização por danos morais contra o empresário. Por telefone, um dos sócios, João da Costa Faria, afirmou que “não quer falar sobre esses assuntos” e que não representa mais Samuel.
Em relação ao processo movido por Francielle Wolff Reis, que alega ter sofrido abusos sexuais do empresário quando tinha entre 14 e 15 anos, Faria declarou que “se trata de uma estelionatária, alguém que não tem o que fazer e está desrespeitando a memória do Samuel”. Foram enviadas por e-mail perguntas ao escritório, e a reportagem permaneceu por sete dias à disposição para receber as respostas. Até a publicação, não houve outras manifestações.
Michael Klein, filho e braço-direito de Samuel Klein na gestão da Casas Bahia até 2010 e acionista majoritário da Via Varejo, também foi procurado. Por meio de sua assessoria, informou que não se manifestará sobre as perguntas da reportagem.
A Via Varejo, empresa que controla a marca Casas Bahia, respondeu em nota reproduzida integralmente abaixo.
“Esclarecemos que a família Klein nunca exerceu qualquer papel de controle na Via Varejo, holding constituída em 2011 para gerir as marcas Casas Bahia, Pontofrio, Extra.com.br e Bartira. A holding, que até agosto de 2019 fazia parte do Grupo Pão de Açúcar, é hoje uma corporação independente, sem bloco controlador, como pode ser conferido no link. Dessa forma, não comentamos sobre casos que possam ter ocorrido em período anterior ao da atual gestão da empresa.
A Via Varejo é muito clara em seus valores e princípios de conduta. Repudiamos veementemente todo e qualquer tipo de assédio, práticas ilegais e atos discriminatórios em nossas dependências, incluindo nossa sede administrativa e nossas lojas. Nosso código de ética e conduta, distribuído para todos os nossos colaboradores, é o guia que regula todas as ações da empresa, sendo sua aplicação acompanhada por auditorias independentes.
Somos ainda signatários de diversos acordos e compromissos que oferecem parâmetros institucionais para nossas estratégias de responsabilidade corporativa, como, por exemplo: Princípios de Empoderamento das Mulheres, elaborado pela ONU Mulheres; Coalizão Empresarial de Luta pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, liderado pela Avon, ONU Mulheres e Fundação Dom Cabral; Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, liderado pelo Instituto Ethos, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e Institute for Human Rights and Business (IHRB), com apoio do Movimento Mulher 360 e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).”
Esta reportagem da Agência Pública faz parte do especial “Caso K”.
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