Cultura

Visibilidade Trans

Eu

No mês da Visibilidade Trans, Patrícia Teixeira conta os desafios de uma longa caminhada: a da transformação.

por Patrícia Teixeira em 26/01/22 17:43

Imagino que em algum momento você tenha parado em frente a um espelho e tido um pensamento que comece com “Eu”, algo como, “eu” estou linda, “eu” estou envelhecendo, enfim, comigo não foi diferente, eu também olhei no espelho e já pensei sobre mim, mas o pensamento mais presente sempre foi, esta não sou eu.

Sou capaz apenas de falar por mim, mas sei que muitas pessoas trans*, assim como eu, ao se olharem no espelho simplesmente tem muita dificuldade em se reconhecer, acho que por isso, desde criança, eu vestia as roupas da minha mãe escondida e me sentia muito bem com isso.

Não ficou bonito, definitivamente, estamos falando de meados dos anos 80 e a moda era peculiar, mas me ajudava a me ver no espelho. Não era apenas a moda que era diferente nos anos 80, o preconceito era muito mais explícito que nos dias de hoje, houve o surgimento da AIDS e travestis, só tinham lugares nos salões de cabelereiro, na prostituição ou em shows.

Pensando bem, não mudou muito, o Brasil é o país que mais mata travestis no mundo, inclusive a transexualidade só deixou de ser completamente considerada doença (CID 10 F64) , agora na virada de 2022!

Patrícia começou tratamento hormonal e psicológico e está na fila de espera para a cirurgia. Foto: Arquivo Pessoal

Este mundo me fez sentir muito medo de existir, e por muitos anos eu me escondi, fingindo ser o que não era, ou me enganando com momentos em que me travestia na intimidade, ou em grupos privados. Vivi assim por muitos anos, mas a vida cobra seu preço, tive muitas crises de identidade, depressão, conflitos familiares, falta de continuidade na vida profissional, até o momento em que chegou a ser insuportável e aos 39 anos, eu não aguentei mais me enganar e resolvi começar o processo de transição.

Comecei por me estabelecer financeiramente, então abri uma empresa, achei que não ter chefe bastaria para eu me sustentar, um grande engano, conforme eu deixava o cabelo crescer e ia mudando as roupas de meu guarda-roupas, eu enfrentava o preconceito, piadas e risos de alguns clientes, além disso, eu confesso, não tenho tino de empresária.

Fechei a empresa e fui recebida em uma operação de telemarketing, eu, cheia de cabelos brancos e 25 anos pulando de trabalho em trabalho sem uma carreira definida, estava ao lado de gente jovem muitas vezes começando seu primeiro trabalho, e como isso foi maravilhoso! Eu tive contato com uma nova geração, com pessoas diversas, mais abertas a viver um mundo plural, eram pessoas que me viam como eu sou e sem dúvida, foram minhas primeiras amizades.

Em muitos momentos eu me sentia adolescente, voltei a sonhar em ter uma carreira profissional, voltei a estudar, e comecei a participar de processos seletivos em diversas empresas. Tive a sorte de ser contratada pela RecargaPay através de um site propositivo para pessoas trans* o Transempregos, e hoje, tenho orgulho de, com apenas um ano e meio de empresa, ter recebido duas promoções e ainda há muito espaço para criar uma carreira!

Em paralelo a vida profissional, teve todas as mudanças em minhas saúdes física e psicológica. Na mesma época que comecei no telemarketing, eu procurei ajuda profissional para começar as mudanças que quero ver em meu corpo, sim, quero, eu estou em transição e muitas mudanças ainda estão acontecendo.

Esta é uma grande dificuldade para muitas de nós, em muitas cidades os ambulatórios destinados ao acompanhamento hormonal e psicológico, são bastante restritos, com filas imensas ou simplesmente não existem. Vale citar que não é apenas uma limitação do Sistema Único de Saúde, foi uma luta eu achar endocrinologista que pudesse fazer o acompanhamento adequado.

Eu consegui atendimento pelo SUS. Procurei uma UBS, Unidade Básica de Saúde, e marquei consulta com a clínica geral. Durante a consulta, informei à médica meu desejo, fiz uma série de exames e tive os encaminhamentos para os profissionais especializados. Fui também ao ambulatório de saúde integral para travestis e transexuais, onde coloquei meu nome na fila para a cirurgia de confirmação.

O tempo de espera para esta cirurgia é longo, ultrapassa os seis anos. Pelo que fui informada, ocorrem poucas cirurgias mensais, pois dependem de acesso a salas e leitos do Hospital das Clínicas. Durante este tempo de espera, é necessário que façamos o acompanhamento com a equipe de hormonização, e pelo menos dois anos de psicoterapia.

Para quem não sabe, as mudanças que ocorrem em nossos corpos, se iniciam com uso hormônios e precisa de um acompanhamento próximo, pois há um real risco de morte. Por isso, eu não vou entrar em detalhes de quais remédios tomo, mas vou aproveitar este momento para incentivar toda pessoa trans a procurar atendimento especializado. Sei que tem filas, sei que demora, mas definitivamente é o caminho mais seguro.

Não pude ter todo apoio familiar que precisava, mas eu preciso dizer que minha história não está sendo escrita como um monólogo, eu tive a sorte de, no começo do processo de transição, encontrar a Christiane, uma mulher maravilhosa, ao qual sou apaixonada e compartilho todos os meus medos e inseguranças. Não sei o que me aguarda no futuro, mas hoje, eu começo a me reconhecer no espelho e me sinto muito feliz com o que vejo.


Quem é Patrícia Teixeira?

Patrícia Teixeira é publicitária e designer, mulher trans de São Paulo, tem 39 anos e trabalha como journey e process analyst na RecargaPay.

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