Cinemateca Brasileira está fechada há mais de um ano e acervo está sem manutenção. Ainda não é possível dizer o que foi perdido no incêndio
por Juliana Cavalcanti em 30/07/21 18:12
O incêndio que atingiu o galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo, nesta quinta-feira (29), está destruindo parte do acervo e documentos em papel da entidade. Se ainda não é possível dizer exatamente o quanto da história do cinema brasileiro foi perdida, pode-se dizer, entretanto, que essa era uma tragédia anunciada – já que a Cinemateca está fechada desde julho do ano passado e o acervo está sem manutenção adequada desde então.
O contrato de gestão com a Organização Social (OS) Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) terminou em 31 de dezembro de 2019 e apesar de promessa do governo federal de abrir uma nova licitação, esta não aconteceu até o momento.
Luciana Correia Araújo, professora do Curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e que já trabalhou na cinemateca, explica que no galpão do incêndio desta quinta estariam filmes da Escola de Comunicação e Artes da USP e curtas-metragens das décadas de 1920 e 1940, além de documentos da antiga Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme) e do Conselho Nacional de Cinema (Concine).
“Se isso tiver se perdido é um desastre. É um material muito importante para se fazer pesquisa sobre a produção e a distribuição do cinema brasileiro. É uma mistura de tristeza e revolta. Já vai fazer um ano que não tem nenhum trabalhador especializado atuando na cinemateca, cuidando do acervo, que precisa ser constantemente revisado e monitorado”, explica a professora.
Segundo Luciana, as pessoas que trabalhavam no arquivo tinham uma rotina diária de controle de umidade e temperatura, com conferência de muitos detalhes que garantem a conservação do acervo. Ela lembra que em fevereiro de 2020 houve uma inundação nesse mesmo galpão que pegou fogo hoje e até agora não se sabe oficialmente o que foi perdido ou danificado nessa ocasião.
Em entrevista por telefone ao site do Canal MyNews, a professora titular do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), Maria Dora Mourão, lamentou mais um incêndio “com perda de memória para a cultura brasileira”.
“É uma perda bastante importante. O galpão da Cinemateca é praticamente um anexo da Cinemateca. A maioria do acervo está na Vila Mariana. Nesse galpão tem muita documentação, cópias de filmes e materiais importantes. Ainda não dá pra saber exatamente o que tinha porque há muito tempo que não estamos acompanhando o dia a dia da Cinemateca. São materiais importantes, uma perda enorme, porque mesmo que só tivessem cópias de filmes, para fazer cópias são necessários recursos e, em muitos casos, as cópias estavam com melhor conservação do que os originais. É uma dor muito grande”, lamentou a pesquisadora, ressaltando que há um ano tenta-se resolver a questão do fechamento da entidade.
Maria Dora Mourão ressalta que o descaso com a cultura não é algo recente e que a cinemateca vem enfrentando problemas desde 2013. “Acho que não se dá tanta importância à cultura. Começou há vários anos e as coisas vão sendo feitas sem nenhuma política pública adequada e com continuidade. Esse é o grande problema, a não continuidade, e a cultura se ressente demais”, ressaltou a professora, que integra a Sociedade Amigos da Cinemateca – um dos movimentos organizados para encontrar uma solução para a reabertura da entidade.
Professor do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o pesquisador Rodrigo Carreiro destaca que o acervo da Cinemateca demanda cuidados e conservação especiais – por ser altamente inflamável – e que o incêndio de hoje, infelizmente, era previsível. “Infelizmente, previsível, porque o acervo estava sem manutenção e ninguém sabia o que estava acontecendo lá dentro. Os rolos de filme são de celuloide, um material muito inflamável, e quando não tem manutenção, ele vai avinagrando. É uma situação que favorece esse tipo de ocorrência. É uma tragédia para a memória do cinema brasileiro”, ressaltou o pesquisador.
Ex-coordenador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Recife, o jornalista e crítico cultural Luiz Joaquim lamenta o abandono do acervo audiovisual e da história cultural brasileira. “É triste, mas quem é da área sabe que era uma questão de tempo. Que sirva como um alerta. Quem é da área está revoltado e incrédulo com o descaso e sabedor de que essa desgraça iria acontecer”, lamenta Luiz Joaquim, ressaltando que a Cinemateca tem um acervo reconhecido mundialmente e que diversas entidades se pronunciaram a respeito da situação que a entidade vem enfrentando há mais de um ano.
Criada em 1940, a Cinemateca Brasileira é considerada o maior acervo de imagens em movimento da América do Sul, com mais de 200 mil rolos de filmes, entre outros itens e documentos da história da produção audiovisual brasileira.
Depois que o contrato de gestão com a Acerp foi encerrado, os cerca de 150 funcionários da entidade passaram vários meses sem receber salários, até que a Cinemateca Brasileira foi fechada – situação na qual se encontra desde a segunda metade de 2020. O Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) chegou a entrar com uma ação judicial contra o abandono da Cinemateca, alegando diversos problemas, como risco de incêndio, atraso no pagamento de contas e salários e falta de manutenção do acervo.
No início do mês de julho, na abertura do Festival de Cannes de 2021, o cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho, membro do júri do festival, denunciou durante a entrevista coletiva oficial do evento a situação da cinemateca: “(A cinemateca) está fechada há cerca de um ano; 95 mil títulos, 230 mil rolos de filmes e fitas de televisão, todos os técnicos e peritos foram demitidos. Essa é uma demonstração muito clara de desprezo pela cultura e pelo cinema. Alguns dos meus amigos estrangeiros perguntam: ‘o que podemos fazer’? Eu respondo: fale sobre isso, discuta, escreva sobre isso”, destacou.
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