Música de Chico Buarque Com açúcar, com afeto, inspira reflexões sobre como age o machismo em nossa sociedade.
por Maria Aparecida de Aquino em 28/03/22 17:02
Chico Buarque e Nara Leão. Foto: Arquivo (reprodução Instagram)
A belíssima música de Chico Buarque de Hollanda: “Com açúcar, com afeto”, foi evocada, recentemente, pelo documentário em cinco episódios: “O Canto Livre de Nara Leão”, dirigido por Renato Terra e produzido pelo Conversa.doc, da Globoplay. O documentário é imperdível, magnífico. Quem não o viu procure assistir esse documento sobre a História Cultural do Brasil, a partir das décadas de 1950 e chegando até a contemporaneidade.
No documentário, Chico Buarque faz uma observação, afirmando que não cantaria mais essa música hoje e que, Nara, se fosse viva, também, não o faria. Uma ressalva: foi Nara que pediu a música para Chico que a fez para ela. O motivo da observação de Chico se relaciona com a temática de “Com açúcar, com afeto”: a história de uma mulher, bastante submissa ao seu homem que, literalmente, faz “gato e sapato” dela. Sai de casa muito bem-vestido, dizendo que vai “em busca do salário” para sustentá-la, mas, no caminho, se perde nos bares onde fica conversando e cantando, até que a “noite lhe canse”. Finalmente, volta para casa, “para chorar o seu perdão”. E, ela, “ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado” argumenta que não pode se aborrecer. Final da história: lhe dá um beijo e “abre os braços” para ele.
Compreendo a observação atual de Chico Buarque: como cantar hoje, depois da “revolução sexual”, do advento do feminismo, das mulheres emancipadas do “Me Too”, uma música com todos os componentes do machismo imperante que, contemporaneamente, tem sido muito atenuado, mas não exorcizado completamente. Depois do documentário Chico fez outro comentário, dizendo que não cantava “Com açúcar, com afeto”, como não cantava muitas outras músicas, não especificamente por seu conteúdo antifeminista.
Desde que assisti ao documentário veio à tona uma história que envolve uma situação análoga – talvez, mais grave – à da mulher narrada por Chico Buarque na canção. Pois bem, vou contar um “causo”.
Décadas atrás, uma bela jovem, vai apresentar à família o seu noivo que, em breve, se tornaria seu esposo. A família fica muito bem impressionada. Falante, simpático, jeito de muito bom moço: em suma, o pretendente ideal. Pois bem, o casamento acontece, com a presença da família, e tudo segue muito bem. A jovem, como era esperado, fica logo esperando sua primeira filha que nasce bem e com saúde. Mas, a tragédia estava a espreita. Um belo dia, o marido atencioso desaparece sem que ninguém saiba para onde foi. E não dá sinal de vida. A jovem fica numa situação desesperadora, com uma filha para criar e sem ter como se sustentar. A família ajuda como pode.
Transcorrido bastante tempo o marido, finalmente, retorna. Depois, a família ficou sabendo que, na sua ausência, tinha ido ao casamento de seu filho, em outro Estado. Tinha outra família estabelecida. À semelhança da heroína de “Com açúcar, com afeto”, ela o recebeu e continuou vivendo com ele. Diversas vezes ele se ausentou como da primeira vez, sempre deixando-a desamparada e sem sustento. Entre idas e vindas tiveram sete filhos.
Numa das visitas da família que, todos os meses, levava para ela e seus filhos, uma cesta básica para ajudar no mínimo indispensável; sem saber que ele havia retornado novamente, ela foi surpreendida lavando os pés – é verdade e não frase de efeito – do “adorado” marido.
“Decifra-me ou te devoro”, como o mito grego da esfinge de Tebas. Como explicar – pior ainda –, entender, as razões do comportamento dessas mulheres? Somente através do machismo que educa as mulheres – ou, pelo menos, educava – para serem submissas, admitindo que o “homem é a cabeça”, portanto, tem o direito ao domínio? Acredito, como na frase atribuída a Shakespeare, que: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que possa imaginar a nossa vã filosofia”. Ou seja, no popular: “o buraco é mais embaixo”. O machismo e a criação feminina podem apenas responder em parte a esses comportamentos. Afinal, depois de toda emancipação, o feminicídio ainda persiste e a violência doméstica é um fato inconteste. Como nos livrarmos desses males? Afinal, não há, nem açúcar, nem afeto, no comportamento desses homens.
Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Especialista em estudos sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985).
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