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Luísa Molina: garimpo está destruindo vidas e terras indígenas com apoio do governo

Em entrevista exclusiva, antropóloga Luísa Molina explica como o garimpo ilegal incentivado pelo presidente está promovendo destruição sem precedentes nos territórios indígenas.

por Por Giulia Afiune da Agência Pública em 18/05/22 12:32

Cadê os Yanomami?”, perguntaram milhares de pessoas nas redes sociais nas últimas semanas em referência aos indígenas da aldeia Aracaçá, em Roraima, que desapareceram depois de ter denunciado que uma jovem Yanomami de 12 anos morreu após ter sido estuprada por garimpeiros.

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O caso é emblemático da violência que o garimpo predatório promove em territórios indígenas, destruindo não só rios e florestas, mas também laços entre os membros das comunidades, de acordo com a antropóloga Luísa Molina. “Em vez de especular, nesse momento o nosso dever é entender o que esse caso inclassificável de violência contra uma menina Yanomami permite ver sobre a força de destruição do garimpo e sobre a cumplicidade do governo Bolsonaro com a destruição”, afirma. A antropóloga e doutoranda da Universidade de Brasília (UnB) estuda o povo Munduruku do médio Tapajós, no Pará, um dos territórios mais afetados pelo garimpo no país.

A situação se torna ainda mais preocupante porque, dentro de terras indígenas, a área ocupada pelo garimpo cresceu 495% entre 2010 e 2020, de acordo com o MapBiomas. Para Luísa Molina, as múltiplas causas desse avanço incluem o desemprego e a inflação, que empurram a população local para a atividade, a legislação permissiva e o apoio político dado ao garimpo por autoridades locais, parlamentares e pelo próprio presidente Bolsonaro. “O contexto atual é de fortalecimento do garimpo não só como força de destruição, mas também dos grupos políticos em torno da atividade. Desde 1988 para cá, não tinha tido um momento politicamente tão favorável para o garimpo”, explica. A antropóloga acrescenta que o “bicho de sete cabeças” do garimpo precisa ser atacado em todas as suas frentes para ser freado e derrotado, e que isso dependerá do compromisso do próximo presidente da República.

Vários estudos e reportagens comprovam que a eleição de Bolsonaro intensificou a ofensiva de garimpeiros, madeireiros e grileiros contra territórios indígenas, como o dos Munduruku e o dos Yanomami. “Nos territórios, a gente vê esse ódio que tá estampado na boca do presidente, em cerco, em intimidação, em ameaça de morte, em perseguição, em guerra mesmo”, conta a antropóloga. Para ela, o cerco aos territórios indígenas revela que o Brasil vive uma verdadeira guerra fundiária e que esse foi um dos fatores que levaram à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. “Tem uma distância muito grande entre o que nós, não indígenas do Centro-Sul urbano do país, sabemos e o que de fato acontece nas bases. Enquanto não nos dermos conta da profunda relação entre o projeto político da extrema direita e as questões fundiárias do país, a gente corre o sério risco de não sair tão cedo dessa situação”, alerta.

Luísa Molina defende que o governo Bolsonaro está promovendo um genocídio dos povos indígenas brasileiros, caracterizado pela falta de assistência durante a pandemia, pelas medidas administrativas e pelo discurso que incentiva os ataques a terras indígenas, sem as quais esses povos não podem seguir vivendo de acordo com seus costumes e tradições. “Quando eu falo que o governo Bolsonaro tem promovido claramente genocídio contra os povos indígenas, eu não tô falando só do número de mortes. Eu tô falando das condições de vida dessa população”, explica. “Eu escutei isso em campo: ‘Agora é Bolsonaro, agora não tem mais essa história de terra indígena protegida’. É como se fosse o sinal verde para um avanço desenfreado dessa ofensiva. Muitas vezes, a gente traduz isso apenas em números e índices, mas as pessoas nos territórios estão vivendo isso nos seus corpos, nas suas relações, naquilo que faz delas pessoas no mundo.”

A antropóloga foi escolhida para esta entrevista exclusiva pelos Aliados da Agência Pública e, durante a conversa, respondeu a perguntas enviadas por esses apoiadores. Quer participar da produção da próxima Entrevista dos Aliados e fortalecer o trabalho da Pública? Vire nosso aliado hoje.

Luísa Molina, antropóloga e pesquisadora, acompanha desde 2012 o debate público acerca dos direitos territoriais de povos indígenas. Foto: Fred Mauro

Os povos indígenas sempre foram alvo de violência e exploração no Brasil, desde a colonização. Mesmo depois da Constituição de 1988, muitos ataques continuaram acontecendo, e mesmo governos de esquerda fizeram menos do que poderiam para garantir os direitos dos povos indígenas. O que mudou com Bolsonaro? 

A primeira coisa que é importante a gente saber e manter sempre em mente é o marco que foi a Constituição de [19]88 do ponto de vista dos direitos indígenas, porque a partir dela a gente deixa para trás o paradigma assimilacionista de que os indígenas precisavam ser incorporados à sociedade, ser brasileiros, deixarem de ser indígenas. Esse paradigma assimilacionista é, por definição, etnocida, porque tem a força de absorver a cultura minoritária numa cultura majoritária; e isso é, por definição, genocida. Isso deu base ideológica para muitos dos ataques aos territórios e à vida das comunidades até então.

Uma das maiores vitórias da Constituição de [19]88 é um paradigma que vai no sentido oposto ao do genocídio, que é historicamente perpetrado pelo Estado. Essa vitória se traduz também no direito territorial, porque ela é uma vitória do direito à diferença. A terra indígena como está [descrita] na Constituição existe para possibilitar aos povos indígenas viver cada um a seu modo, ser quem eles são, habitar as suas terras conforme seus usos, costumes e tradições.

Essa afirmação da diferença está em risco nesse momento. Não sei se já houve algum retrocesso igual na história do país. Com a chegada da extrema direita ao poder, aliada a vários grupos políticos com interesses diametralmente opostos aos da proteção das terras indígenas, a gente vê novamente um discurso pautado na ideia de que os indígenas têm que ser como nós, não indígenas, que têm que se integrar à sociedade, que eles vivem como animais no zoológico, coisas assim. E toda essa orientação ideológica do governo Bolsonaro em relação aos povos indígenas se traduz não apenas em discurso, mas em medidas sistemáticas.

Desde 2019, a gente vive num estado de espanto porque a gente vê a materialização desse ódio à diferença, a materialização desse plano de retroceder com todos os avanços que tinham sido feitos até então. Isso se apresenta, por exemplo, nas pessoas que ocupam cargos de destaque para a execução da política indigenista, no absurdo de forçar contatos com os povos isolados. A gente vê, por exemplo, toda força que a Funai tem colocado para entrar com produção agrícola intensiva nos territórios indígenas, que vai no sentido oposto do usufruto exclusivo que está previsto na Constituição e que os povos defendem tão arduamente. A gente vê um incentivo claro a atividades predatórias, como o garimpo ilegal e a extração de madeira, que também vão no sentido oposto da plena proteção dessas terras e das suas comunidades, que é um dever do Estado. A gente vê uma intensificação da violência contra os povos indígenas, que, claro, não começou em 2019, mas explodiu de lá para cá com um aval. Eu escutei isso em campo: “Agora é Bolsonaro, agora não tem mais essa história de terra indígena protegida”. É como se fosse o sinal verde para um avanço desenfreado dessa ofensiva. Muitas vezes, a gente traduz isso apenas em números e índices, mas as pessoas nos territórios estão vivendo isso nos seus corpos, nas suas relações, naquilo que faz delas pessoas no mundo.

Então, o que a gente tem visto de 2019 para cá é uma confluência entre essa ideologia assimilacionista, esse ódio à diferença, que é profundamente racista, decisões políticas de colocar determinadas pessoas em cargos-chave que são opostas àquilo que é o propósito daqueles cargos – de respeitar a autodeterminação, de proteger territórios, de não incentivar a exploração predatória desses territórios. E a gente vê isso também materializado em medidas administrativas mesmo, que vão na esteira dessas decisões políticas. Quando a gente estuda as teorias de genocídio que falam de um plano sistemático para aniquilar a constituição de um grupo minoritário, é aquilo ali. É genocídio de cartilha o que o Bolsonaro tá fazendo com os povos indígenas no Brasil. E elementos para caracterizar isso não faltam.

De acordo com Molina, garimpo ilegal está promovendo destruição sem precedentes nos territórios indígenas. Foto: Oldair Lamarque (Agência Pública)

A pandemia foi desastrosa para os povos indígenas, mas a CPI da Pandemia no Senado não incluiu o crime de genocídio contra essa população nas acusações contra Bolsonaro no seu relatório final. Você acha que o que ocorreu configura um genocídio? Por quê? 

O genocídio como crime é caracterizado majoritariamente com foco na pessoa ou no ente que promove o genocídio. Existe um paradigma majoritário dentro desse campo de estudos de que genocídio só ocorre quando há grandes massacres. Mas, se a gente olhar do ponto de vista das vítimas, a gente amplia um entendimento sobre o genocídio contra os povos indígenas. Não tô falando só do número de mortes. Estou falando das condições de vida dessa população. Então a pandemia intensificou ainda mais aquilo que já estava em curso: um aumento vertiginoso das invasões de terra, da violência contra os povos indígenas, da exploração intensiva desses territórios, que destrói as bases da existência desses povos, e, inclusive, um aumento na mortalidade. A gente sabe que os indígenas, junto com a população negra, foram a parte da população brasileira mais suscetível e mais vulnerável aos efeitos da pandemia, aos problemas de assistência. A gente viu isso, por exemplo, nos vetos que ele [presidente Bolsonaro] fez ao projeto de lei que visava justamente dar uma assistência qualificada à população indígena e às comunidades tradicionais.

Além disso, a gente tem muitos outros vetores genocidas operando nesse governo. Precisamos entender o que significa atacar a terra desses povos – e aí eu não tô falando só da terra como solo, mas da terra como um território no sentido mais amplo, que abarca o rio, as florestas, os lugares considerados sagrados pelos indígenas, os outros seres que habitam esses territórios. Aquilo que tá na Constituição: “a terra tradicionalmente ocupada é aquela que é vivida pelos indígenas segundo os seus usos, costumes e tradições, e que permite a reprodução física e cultural desses povos”. Quando a gente ataca essa terra, a gente tá atacando as condições de existência dessa população. Então, quando a gente está falando de garimpo predatório, a gente tá falando de genocídio também. E a pandemia levou isso para um outro patamar.

De acordo com Molina, garimpo ilegal está promovendo destruição sem precedentes nos territórios indígenas. Foto: Oldair Lamarque (Agência Pública)

Você falou em entrevista que não podemos resumir o que está acontecendo agora à “perversidade” de Bolsonaro, que a sede dele de explorar as terras indígenas não veio do nada, nem o apoio que ele tem. Você já viu claramente ataques acontecendo por causa do incentivo do discurso dele? 

O bolsonarismo como a gente vê hoje – com esse escancarado ódio à diferença e à diferença dos indígenas – antecede o Bolsonaro. Esse ódio está estampado nas mais diversas regiões do país, sempre onde existe sede e gana por tomar terra. A gente já via isso nos ruralistas quase dez anos atrás.

Eu sempre cito isso como exemplo: em dezembro de 2013, tinha um grupo de parlamentares fazendo um grande evento em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) na Câmara Federal e incitando as suas bases de produtores rurais em diferentes regiões a partirem para cima dos indígenas. Queriam reproduzir em outros estados a experiência que eles tinham acabado de fazer em Mato Grosso do Sul, um leilão para arrecadar dinheiro para armar a população para defender as fazendas contra comunidades indígenas em processo de retomadas territoriais. E isso dito sem meias palavras.

Esse pensamento e esse modo de encarar a população indígena nesses contextos de conflito fundiário são muito anteriores ao Bolsonaro. E não é à toa que, em determinadas regiões, ele teve e ainda tem tanto apoio. Porque esse é um país marcado pela guerra fundiária. Falar em “conflito fundiário” é muito pouco para dar conta do tamanho do problema, da assimetria de forças, dos ataques sistemáticos às terras indígenas e às comunidades que tentam retomar seus territórios, que foram retirados à força.

De 2019 para cá, na região do Tapajós, por exemplo, lideranças estão precisando se exilar das suas aldeias porque estão ameaçadas de morte, porque vem garimpeiro e ameaça as filhas delas, porque vai gente falando que vai queimar as casas delas, como de fato aconteceu. As lideranças não podem transitar livremente. As terras estão tomadas de invasores por todos os lados, então os indígenas ficam ali, cercados. A gente vê uma situação de cerco tanto no contexto do Tapajós como no dos Yanomami, dos Awá-Guajá, dos Ka’apor, dos Kaiowá e Guarani. E essa situação foi muito intensificada a partir de 2019. Nos territórios, a gente vê esse ódio que tá estampado na boca do presidente, em cerco, em intimidação, em ameaça de morte, em perseguição, em guerra mesmo.

Tem uma distância muito grande entre o que nós, não indígenas do Centro-Sul urbano do país, sabemos e o que de fato acontece nas bases. Esse é um problema muito sério, porque parte considerável das razões pelas quais a gente tá nessa situação crítica como país, sofrendo os efeitos da subida ao poder da extrema direita, tem relação direta com essa guerra fundiária. Enquanto não nos dermos conta da profunda relação entre o projeto político da extrema direita e as questões fundiárias do país, a gente corre o sério risco de não sair tão cedo dessa situação.

Mineradoras nas avenidas centrais de Itaituba, no Pará, em 2012. Foto: Fernanda Ligabue (Agência Pública)

Nos últimos dias, temos acompanhado o caso dos Yanomami da aldeia Aracaçá, em Roraima. Depois de terem relatado que uma adolescente de 12 anos foi sequestrada, estuprada e assassinada por garimpeiros, a aldeia foi queimada e os membros desapareceram. Ainda há muitas perguntas não respondidas sobre o caso. No que a gente de fora precisa prestar atenção para entender um caso como esse? 

A primeira coisa que a gente precisa saber é que existem as organizações que estão trabalhando diretamente nos territórios e acompanhando essas questões de perto, que têm que ser nosso farol. Nesse caso, o farol é a Hutukara Associação Yanomami, que está nos territórios, está em interlocução com todos os órgãos competentes e apurando os acontecimentos.

Não posso dizer aqui para você: tal e tal coisa aconteceu. O que eu posso te dizer, com segurança, é que o caso denunciado no Aracaçá é um caso emblemático da violência promovida pelo garimpo predatório nos territórios. É fato: as invasões garimpeiras dentro do território Yanomami acontecem há muito tempo, mas explodiram de 2019 para cá, como em outros territórios também. Existe uma violência inimaginável em curso no território Yanomami que está descrita com depoimentos, com fotos, com vídeos e com dados no trabalho técnico que a Hutukara Associação Yanomami está fazendo. Dois anos atrás, o vice-presidente Mourão tava dando declarações públicas contradizendo a Hutukara. A Hutukara Associação Yanomami dizia: tem 20 mil garimpeiros ilegais no nosso território, o Mourão falou que “nada, são uns 3 mil”.

Em vez de especular, neste momento, o nosso dever é entender o que esse caso inclassificável de violência contra uma menina Yanomami permite ver sobre a força de destruição do garimpo e sobre a cumplicidade do governo com a destruição. Como é que chegou a esse ponto? O que está sendo feito pelas organizações de base? O que está e não está sendo feito pelo poder público? E o que precisa ser feito?

Nosso debate tem que ser qualificado nesse sentido, e o que não falta são peças técnicas mostrando a dimensão do problema e as medidas necessárias a serem tomadas. A Hutukara Associação Yanomami lançou um relatório há poucas semanas com essas medidas, e a orientação deles é: retirada dos garimpeiros de dentro do território.

Ao invés da gente falar apenas “cadê os Yanomami?”, por que a gente não fala “tem que tirar os invasores de dentro da terra indígena, já que os Yanomami já mostraram por a mais b mais c que existem aproximadamente 20 mil, que eles entram dessa e dessa forma pelo território, que tem um monte de pista de pouso irregular dentro do território, que tem empresários fomentando essa atividade ali dentro, que o desemprego impulsiona a busca por esse tipo de atividade por uma população extremamente desamparada, que tem discurso político incentivando esse tipo de atividade, que teve uma falta de resposta sistemática aos apelos para retirada dos invasores dali de dentro”.

Agora que tá todo mundo sabendo que o garimpo, como é realizado nas terras indígenas hoje, promove uma destruição dessa dimensão, que a gente então avance na compreensão de que: um, não é atividade tradicional; dois, é um problema gigantesco que tem que ser atacado em todas as suas frentes; e, três, é algo que vai absolutamente na contramão do que é uma terra indígena. E que proteger a terra indígena é um dever do Estado. Então ele não pode se eximir dessa responsabilidade.

O que esse caso dos Yanomami revela sobre a explosão do garimpo em terras indígenas? Você já disse que o garimpo é “um bicho de sete cabeças” e que, se não atacarmos todas, ele ganha. Quais são essas diferentes dimensões que nós precisamos entender e atacar? 

De um lado, temos questões mais macro, como, por exemplo, desemprego e desassistência da população, que promovem uma corrida pelo envolvimento com atividades predatórias, como o garimpo. Isso não é de hoje, na década de 80 a gente teve a mesma coisa em um momento de inflação e desemprego.

A gente também tem grupos políticos e econômicos que estão orientados para exploração intensiva do que eles chamam de “recursos naturais”. Eles têm uma ideia de que as terras indígenas são muito ricas e que o fato de serem terras protegidas seria um grande empecilho. Nesse sentido, a cabeça [principal] do bicho de sete cabeças seria a atuação política de grupos que dão aval e incentivo ao garimpo predatório. Desde o prefeito que manda áudio falando “Você tá desempregado? Vai para o garimpo”, como aconteceu em Itaituba (PA), até o incentivo político de vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores que atuam como lobistas, numa dupla posição, apoiando proposições que vão vulnerabilizar ainda mais as terras indígenas, como o PL 191 e o PL 490. Ou parlamentares que ajudam a abrir as portas do Planalto para organizações garimpeiras. O contexto atual é de fortalecimento do garimpo não só como força de destruição, mas também dos grupos políticos em torno da atividade. Desde de [19]88 para cá, não tinha tido um momento politicamente tão favorável para o garimpo. Esse aspecto político é outra das frentes que precisa ser investigada.

Incentivo de políticos às proposições contrárias aos direitos indígenas fortalecem ação de garimpeiros, de acordo com Molina. Foto: Tiago Miotto (Cimi)

Outra das cabeças do bicho é a diferença entre os trabalhadores de garimpo e os donos do negócio, os empresários de garimpo. Quem está mandando maquinário para dentro de terra indígena ilegalmente, quem tá mandando a polícia escoltar ouro em avião e helicóptero, quem tá mandando milícia armada para dentro das terras indígenas para escoltar a entrada de maquinário, como aconteceu no Tapajós no ano passado, que empresários estão pagando ônibus para indígenas aliciados virem para Brasília protestar a favor da abertura das terras indígenas para mineração e garimpo? Quem são os grupos políticos e econômicos ligados a essa atividade? No caso do Tapajós, a gente mapeou que quem realmente está promovendo a investida do garimpo em terras indígenas são empresários e seus aliados no Congresso.

Outra coisa é controlar aquilo que viabiliza a atividade: controlar a pista de pouso ilegal, não ter só operação para destruir maquinário, mas ter fiscalização constante nos pontos de entrada, por terra ou por via aérea, de maquinário pesado nos territórios. Tem determinadas regiões onde os postos de gasolina vivem de vender gasolina para o garimpo ilegal. Quem tá controlando isso? Por que não existe uma fiscalização nos postos de combustível? A gente tem que falar, por exemplo, do fornecimento de internet dentro de garimpo legal, que permite aos caras se comunicarem e esconderem maquinário quando vaza alguma notícia de operação. Do próprio vazamento de operações de combate ao garimpo ilegal, uma coisa extremamente delicada e sigilosa. Como os garimpeiros são os primeiros a saber que a Polícia Federal, a Força Nacional, o Ibama estão indo lá para queimar maquinário?

Isso tudo sem falar na própria cadeia de produção, de compra e venda de ouro, que é absolutamente frágil e totalmente suscetível a fraude. Os processos de fraudar a origem ilegal do ouro estão cada vez mais sofisticados. A gente tem que falar também sobre quem tá comprando esse ouro ilegal. Quais são as empresas estrangeiras? E as normas internacionais? Se é tão sabido que a maior parte do ouro que sai do Brasil é de origem ilegal, como se compra ouro do Brasil?

Precisamos falar também das políticas públicas dentro dos territórios. Uma coisa que acontece, que é horrível e triste demais, é o fato de as terras às vezes estarem tão desassistidas que os grupos econômicos de não indígenas – não só de garimpo, mas também de arrendamento de terra, de exploração de madeira – entram querendo dar aquilo que o Estado não dá. Então tem um território onde não se pode mais beber água do rio porque a água do rio tá toda poluída com mercúrio por causa do garimpo. Aí o garimpeiro fala: “Ah, a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] não tá furando poço artesiano, então eu furo para você, aí você me deixa explorar o barranco aqui”. Coisas assim acontecem demais. O Estado tem que fornecer os serviços básicos para que aquela população não fique suscetível a esse tipo de chantagem. E tem que fortalecer as organizações indígenas, que têm feito o que o Estado não está fazendo: fiscalizar, monitorar, produzir informação qualificada.

Qual é o efeito do garimpo no dia a dia dos povos indígenas? Um Aliado perguntou especificamente sobre o impacto na segurança hídrica. 

Sem floresta, a gente não tem nascentes e, sem nascentes, a gente não tem água. O garimpo está matando os cursos d’água. Eles vão entrando que nem formiga pra dentro, pra dentro, vão devastando os igarapés, que são o que joga água pro rio, vão devastando as nascentes, vão tirando a cobertura vegetal, que tem impacto direto nas nascentes. E isso não para nos limites físicos das terras e dos territórios, porque o rio flui, né? No Pará, o Greenpeace mapeou: mais de 600 km de rios foram destruídos pelo garimpo.

Se a gente tiver as principais bacias amazônicas devastadas por uma atividade como essa, como vai ficar a segurança hídrica do restante do país? Os impactos não são circunscritos, é uma atividade que devasta rios, igarapés e floresta. E tudo isso tem um impacto sistêmico.

De acordo com a antropóloga, o Estado falha na fiscalização, monitoramento e produção de informação qualificada sobre ataques ao meio ambiente e aos povos indígenas. Foto: Fernanda Ligabue (Agência Pública)

E o garimpo impacta também a própria comunidade, né? A convivência com os garimpeiros pode trazer doenças, violência sexual e outros problemas, como a gente está vendo agora no caso dos Yanomami. 

Isso eu posso te responder com mais elementos porque é o que estou pesquisando. O garimpo promove, nas relações entre as pessoas, um dano análogo ao dano que promove nos territórios, e isso não é visto. Existe uma analogia possível entre essa destruição promovida pelo garimpo na terra, nos rios e nas florestas – aquelas imagens aéreas das terras completamente devastadas, a floresta derrubada, a lama tomando conta do território – e a destruição que o garimpo promove nas relações entre as pessoas e no corpo das comunidades. Essas, a gente não vê numa imagem aérea, mas elas são absolutamente perversas e promovem uma consternação e uma dor entre os indígenas que chega a ser difícil descrever.

Há um sistemático assédio de garimpeiros a pessoas que estão em situações de vulnerabilidade em terras onde não tem assistência adequada do Estado. Eles se aproximam dessas pessoas, oferecem cestas básicas, oferecem motor de popa, gramas de ouro, dão armas, dão bebidas e incitam essas pessoas a se voltarem contra os seus próprios parentes. Existe uma sedução perversa e perniciosa que faz com que essas pessoas deixem de considerar os seus parentes e o que os parentes estão falando sobre a importância de preservar o território, porque existe a promessa de um enriquecimento e de um acesso às mercadorias, aos bens e às facilidades que é ilusório, porque só quem enriquece com garimpos são os donos de garimpo, que não estão lá metidos na lama.

Essas táticas e estratégias de aliciamento vão desfazendo vínculos, desfazendo relações. A gente escuta relatos dos mais tristes, de parente apontando arma para parente porque garimpeiro tá forçando a barra para entrar no território. Tanto os Munduruku quanto algumas lideranças Yanomami falam que o garimpo vira uma doença que transforma os parentes numa outra coisa, que eles ficam cegos pelo brilho do ouro, por essa ganância, que é um modo não indígena de encarar a vida.

Tanto os políticos profissionais como os lobistas usam isso como subterfúgio para dizer que são os indígenas os interessados na abertura das suas terras. Ou seja, é uma mentira circular que usa o desconhecimento do público acerca da realidade desses territórios e da realidade de uma maioria que luta contra a atividade para dizer que na verdade são os indígenas que querem.

Falam assim: “Fulano foi aliciado pelo garimpo, então esse fulano vai virar nosso porta-voz”, como se aquela pessoa falasse por todos os indígenas, como se bastasse um ou outro declarar [o apoio ao garimpo]. Só que os povos indígenas nunca são representados por uma pessoa só. E a sociedade brasileira em geral não sabe que os povos indígenas não se organizam de uma maneira individual, e sim coletiva. Isso a gente ainda não viu sendo tratado de maneira acurada no debate público nem na imprensa. É muito comum falarem assim: “O povo X é dividido”, o que passa a impressão de que existe alguma simetria, quando não é o caso. Se você tem uma associação aliciada por garimpeiros e oito associações atuando para tirar o garimpo, você não está falando de um povo “dividido”, como se fosse uma divisão simétrica. Na verdade, o que a gente tem no debate público é uma distorção absurda dessa questão.

Você falou que é papo furado essa figura do “garimpeiro artesanal”, que o Bolsonaro usa muito para justificar, inclusive, um programa de apoio à mineração artesanal que ele lançou em fevereiro de 2022 e que ambientalistas dizem que é um incentivo ao garimpo ilegal. Quais são os tipos de garimpo que existem nos territórios?

Existem tipos diferentes, mas o garimpo como é realizado dentro de terra indígena hoje – que eu chamo de garimpo predatório – é altamente mecanizado, e com esse poder e essa escala de destruição que a gente está vendo. É um garimpo com uma divisão de classe entre trabalhadores e empresários, com volume de produção muito grande. Existem ainda, em determinados locais, garimpos manuais feitos com bateia, de um modo mais artesanal. Mas isso é a minoria da minoria e não condiz em absoluto com aquilo que o Bolsonaro tá falando. Quando ele fala de garimpo artesanal, ele tá querendo que a gente veja o garimpo como é realizado nas terras indígenas, como se ele fosse artesanal, mas não é. E ele tá se utilizando de uma ambiguidade do termo.

É um termo antigo, da época em que se fazia garimpo manual, artesanal mesmo, de bateia, e nos aluviões. Hoje em dia, a gente chama, com o mesmo nome, atividades com nível tecnológico distinto. Tampouco é mineração, porque esse garimpo que a gente vê nas terras indígenas Munduruku, Yanomami não é também mineração industrial, como é, por exemplo, a mineração da Vale, da Alcoa etc. Tem uma distinção entre atividades que são feitas no subsolo e atividades que são feitas na superfície.

Mineração, como é algo que diz respeito ao subsolo, para ela ser realizada dentro de terra indígena, precisa de uma lei para regulamentar. Isso não existe ainda, e é o que o Bolsonaro quer fazer com o PL 191, mas de um jeito péssimo. O garimpo, que é essa atividade feita tanto em barrancos como no leito dos rios, não pode ser realizado dentro de terra indígena. Mas o garimpo conta com uma legislação como se fosse uma atividade artesanal, conta com uma facilidade de obtenção de licença para explorar como se fosse uma atividade de baixo impacto, conta com licenciamento simplificado…

Há alguns anos, a Pública fez uma série de reportagens sobre os projetos de hidrelétricas no rio Tapajós, que iriam alagar áreas importantes e até sagradas para o povo Munduruku e expulsar os indígenas dali. O governo federal ainda não tinha demarcado as terras, então os membros das aldeias se organizaram para fazer a autodemarcação do território e assim tentar se proteger. Você pode dar mais detalhes sobre o que é a autodemarcação e como está essa situação agora? Quais são as potencialidades e riscos que esse tipo de ação traz?

Nesse contexto eleitoral, é importante que a gente, do campo progressista, saiba que não é só um governo de extrema direita que pode promover políticas destrutivas para os povos indígenas. O caso da Terra Indígena Sawré Muybu, que é a terra dos Munduruku do médio Tapajós, é emblemático nesse sentido, porque ficou no meio de uma encruzilhada entre os planos do governo do PT de construir um megacomplexo hidrelétrico de mais de 40 usinas na bacia do Tapajós e o processo administrativo de regularização de terra indígena.

O Estado não dá terra para os indígenas, ele reconhece a ocupação tradicional indígena no território. Para isso, tem que ser feito um longo processo administrativo de regularização fundiária. Ao longo desse processo, a terra é estudada, depois identificada, declarada, homologada e registrada. Uma terra demarcada é uma terra homologada e registrada. Uma terra em processo de demarcação está passando por todas essas etapas. Em 2011, foi feito um instrumento normativo que determinava que só terras indígenas que já tinham sido identificadas pelo Estado poderiam ser consideradas em processos de licenciamento ambiental. Ou seja, terras onde o Estado falou “isso aqui é terra indígena”.

E aí o que aconteceu? Depois de Belo Monte, os planos do governo eram barrar o rio Tapajós, que foi durante muito tempo entendido como a última fronteira energética da Amazônia. Dentro desses planos de barrar o Tapajós com um complexo hidrelétrico, tinha a usina de São Luís do Tapajós, que incidia sobre o território considerado sagrado para os Munduruku no médio curso do rio, o território Daje Kapap’ Eipi, na Terra Indígena Sawré Muybu.

Existia uma pressa e uma pressão gigantescas por parte do setor elétrico e dos outros grupos políticos interessados na construção dessas barragens – empreiteira, empresa de energia, investidores chineses – para promover uma celeridade nesse processo. E essa pressão gerou algo que foi absolutamente escandaloso: já tinha sido feito um estudo de acordo com as normas que regem regularização fundiária, mostrando por a mais b que aquela terra é terra tradicionalmente ocupada. Restava a Funai publicar esse estudo. Só que a pressão sobre a Funai para não publicar foi gigantesca, porque, se publicasse o relatório, a terra dos Munduruku tinha que entrar no processo de licenciamento. Enquanto o Estado não estava reconhecendo aquela terra como terra indígena, o Estado poderia fazer de conta que não tinha indígena lá.

Na minha dissertação, eu digo que esse caso é emblemático do modo como o Estado trata os direitos territoriais indígenas, porque entra num jogo de faz de conta. Faz de conta que não tem indígenas ali e, com isso, a gente consegue levar adiante o processo de licenciamento da barragem. Foi escandaloso porque a presidente da Funai na época admitiu para os Munduruku: “A gente sabe que a terra é de vocês, mas eu não tô conseguindo publicar esse relatório porque o setor elétrico e a Presidência da República estão aqui em cima de mim”.

Na época, a Secretaria-Geral da Presidência da República pressionava os Munduruku de um jeito obsceno para poder liberar a barragem. Quando eu fui para campo, eu escutei deles as histórias mais tenebrosas. Não sei se foi a Secretaria-Geral da Presidência da República, mas certamente foi gente envolvida com o projeto da barragem que chegou a parar lideranças no meio da estrada oferecendo uma mala de dinheiro em troca da assinatura de um termo para poder fazer o licenciamento da barragem. Segundo os indígenas, a Abin cercava as comunidades, era helicóptero sobrevoando a aldeia, uma coisa de terror.

Aí o que aconteceu? Depois que a presidente da Funai admitiu pros Munduruku que ela tava de mãos atadas por conta da pressão do setor elétrico, o relatório foi vazado – como a Pública bem sabe –, e, entre outubro de 2014 e julho de 2015, os Munduruku fizeram a autodemarcação do território, que eu acho uma das coisas mais brilhantes do mundo. Os Munduruku subverteram o jogo do Estado, mostrando, nos moldes do próprio Estado, que aquela terra era uma terra ocupada. “Ah, vocês não estão fazendo, então a gente vai fazer, e vai fazer conforme as regras de vocês, do jeitinho que o Estado faz, e aí vocês não vão ter mais como negar que tem terra indígena aqui.” Então eles pegaram o relatório feito pela antropóloga da Funai, pegaram os limites traçados pela equipe técnica da Funai, abriram as picadas em torno do território e mostraram pro mundo inteiro que aquela terra estava ali, que era uma terra habitada por indígenas, que na outra margem do rio tem uma comunidade tradicional, um projeto de assentamento agroextrativista. Mostraram que, ao contrário do que os burocratas do Ministério de Minas e Energia falavam à época, o Tapajós é território ocupado, é uma região viva cheia de gente, não é um território vazio, como eles queriam fazer crer.

Membros dos povos Kayabi, Apiaká, Munduruku e Rikbatsa em reunião na Aldeia Teles Pires para discutir articulação contra hidrelétricas no rio Tapajós, em 2015. Foto: Mídia Ninja (Fórum Teles)

Demarcando essa terra, você assegura que o povo Munduruku possa seguir vivendo conforme seus usos, costumes e tradições. Porque é uma terra que tem lugares sagrados para os Munduruku, onde há marcas de eventos mitológicos importantíssimos para constituição desse povo como uma singularidade. A gente já tem o garimpo ali, cercando esse lugar. Se um lugar desses e os espíritos que o habitam são destruídos por uma barragem, o próprio povo sofre nas suas condições de existência.

E todos os anos desde então eles fazem expedições para reavivar e remarcar esses limites porque a floresta cresce, né? E, enquanto eles estão fazendo isso, eles vão batendo os pontos de GPS onde tem as invasões. Eles estão fazendo um trabalho de Estado. E o que a gente mais vê andando pelo território são essas placas baleadas.

E aqui eu preciso fazer um parêntese, colocar uma nota de rodapé: essas expedições são feitas pelos Munduruku, de forma autônoma, todos os anos. É um negócio supercomplexo de organizar, superdispendioso, é supercaro, superperigoso para os indígenas, porque pode ter madeireiro armado no meio do caminho. Você chama 80, 90 pessoas que descem lá do alto curso do rio, das aldeias mais afastadas, que às vezes demoram três dias para chegar ao médio curso do rio. Você organiza esse pessoal. Para descer para o médio curso do rio, você precisa de embarcação, que vai sempre quebrar no caminho. Você precisa alimentar toda essa população. São mulheres, crianças, idosos, pessoas que vão lá por conta própria, deixam de fazer suas roças e suas atividades cotidianas para se deslocar por dias de viagem, debaixo de chuva, debaixo de sol, enfim, para entrar na mata, encarar todos os perigos da mata – às vezes, tem uma sucuri, uma cobra gigantesca no meio do caminho – para poder reavivar esses limites.

De 2019 para cá, eles viram cada vez mais esse tipo de invasão crescer. Viram grileiros, viram picadas de não indígenas desmatando para poder ocupar, como se a terra fosse deles – ou seja, grilagem. E, no meio disso tudo, eles têm sido monitorados pelos madeireiros, grileiros e garimpeiros da região. Em 2020, o cacique Juarez, lá da Sawré Muybu, me falou: “Daqui a pouco a gente não vai ter mais terra porque os grileiros chegaram aqui e abriram uma picada do lado da minha roça. A gente anda por aí e vê que eles estão cada vez mais perto da gente”. Também em 2020, uma liderança estava com a cabeça a R$ 30 mil para quem pegasse ele, com foto dele circulando nos grupos de WhatsApp, porque estava atuando nessas associações de fiscalização do território.

Você descreve seu trabalho dizendo que pesquisa “o sentido da destruição da terra e da vida para o povo Munduruku do médio Tapajós”. Como o povo Munduruku enxerga essa ofensiva contra suas terras e suas vidas? Uma Aliada perguntou como se sentem essas pessoas vivendo em terras delas, mas fazendo parte de um país que não as respeita, não as quer e não as protege? 

Eles são um povo muito guerreiro. Me emociono falando disso porque os Munduruku estão no meio de um mosaico de ameaças, tanto de hidrelétrica, de hidrovia, de portos para escoamento de soja, obras grandes, sem falar das invasões de garimpo, madeira, extração de palmito de açaí, enfim. Eles estão no meio disso tudo, mas eles não desistem e falam que vão lutar até o fim. Eles têm uma tenacidade na luta e uma força para persistir que é impressionante. Por que eles fazem isso? Porque eles sabem que é na terra que eles podem viver bem.

Uma amiga minha muito querida que é uma liderança importante, a Aldira Akai, uma vez me falou – a gente tava sentada no quintal da casa dela, a nenenzinha dela tava brincando com as galinhas em volta, as outras crianças correndo para lá e para cá na aldeia; elas vivem com uma liberdade de transitar pela aldeia, aí vai para o igarapé, pega uma fruta, joga bola, brinca com macacos – assim: “Se a barragem vier, se tomarem a nossa terra, se o garimpo tomar conta, eu não vou poder criar meus filhos com a liberdade que eu tive crescendo na aldeia. A gente vai ter que ir para cidade, e a gente não sabe viver na cidade. Cidade é um lugar de escassez, de você passar fome, você vai ser levado para viver na precariedade. Na terra indígena, as aldeias Munduruku são lugares de produção de fartura, de abundância”. Eles produzem muito nas roças. Partilham alimento entre os parentes. E eles constituem o modo de vida deles na fartura que eles produzem, porque eles estão ali na terra.

Ela me falava com angústia dessa ameaça. Mas é sempre uma angústia acompanhada de uma força, porque o que tá em jogo ali é a vida dos próprios filhos, dos netos, é a persistência daquele povo. E outra, eles sabem também que aquela terra, o território deles, foi criada pelo ser, pelo demiurgo que criou a humanidade, o Karusa-kaibê. E aquela terra foi dada a eles para que eles protegessem a terra e os espíritos que habitam a terra, para que eles cuidassem dos lugares que eles consideram sagrados que existem naquela terra. Então, quando eles estão lutando para que a terra permaneça íntegra, viva, sem invasões, saudável, sem poluição de mercúrio, sem a devastação que as invasões promovem, sem a destruição pelas grandes obras, eles estão cuidando daquela terra não só para eles, mas para os outros tantos seres que habitam aquela terra. Então existe um propósito na luta, que é algo que a gente talvez não tenha ideia de dimensão, mas que é aquilo que dá força para eles persistirem. E eles persistem.

Indígenas do povo Munduruku reunidos para as atividades de autodemarcação, em 2015. Foto: Marcio Isensee e Sá

Além da autodemarcação, nos últimos anos temos visto indígenas se articulando e se mobilizando de várias formas, seja como influenciadores na internet, ou criando perfis e conteúdos virais nas redes sociais, produzindo podcasts, filmes etc. Quais foram as ações mais interessantes de mobilização que você destacaria? 

Eu cito a atuação dos coletivos que estão nos territórios e fazem as pontes entre os territórios e as redes. Por exemplo, a proliferação de coletivos audiovisuais indígenas é uma coisa incrível que tem acontecido, de comunicadores indígenas que têm trabalhado nos territórios e atuado nas redes; os cineastas indígenas que têm trabalhado nos territórios e mostrado para o a realidade deles nos territórios. A gente tem também cada vez mais espaço, felizmente, para que indígenas possam falar em ambientes que antes eram negados a eles mesmo, como, por exemplo, a própria COP [Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas], que teve uma presença indígena muito marcada, e outros eventos internacionais junto a organismos internacionais.

Você vê algum traço na maneira de se organizar politicamente dos indígenas que é diferente de povos não indígenas? 

Uma coisa importante da gente lembrar sempre é que um indígena que está à frente falando, uma liderança, por exemplo, Txai Suruí ou Alessandra Munduruku, quando falam na COP ou dentro da Câmara dos Deputados, nunca é só ela que tá falando. Ela traz na sua fala o seu povo, a perspectiva das comunidades às quais ela está vinculada, a perspectiva de um povo que tá discutindo nos seus territórios, em coletividade. E isso é fundamentalmente diferente do nosso modo não indígena de conceber representação, de entender identidade e de entender um indivíduo, porque o indivíduo é uma invenção nossa.

Nenhum Munduruku da resistência decide sozinho e pensa essas coisas sozinho. Tá sempre falando aquilo que é construído coletivamente nos encontros, nas assembleias, nas reuniões, dentro dos territórios, com a presença de todos, caciques, pajés, mulheres e crianças. Todos falam e todos escutam. É um espaço coletivo de reflexão e deliberação. E são essas reflexões feitas coletivamente que aparecem nas falas de uma liderança como Alessandra Munduruku. Isso é muito importante porque, inclusive, os garimpeiros têm atacado ela sistematicamente toda vez que ela aparece nesses espaços.

É como se na voz dela tivesse muitas vozes. É a vocalização de um pensamento construído literalmente no território, em composição com tudo aquilo que faz daquele território uma terra indígena, a partir das relações entre os Munduruku e a floresta, os Munduruku e o rio, os Munduruku e os espíritos, os Munduruku e os lugares sagrados.

E a gente, não indígenas, não tem noção disso. Quando a gente está escutando essa pessoa, a gente acha que tá escutando aquela mulher ali com aquele CPF, aquele RG. Não. A gente está escutando uma voz de muitos. É como se a liderança fosse ela mesma fruto daquela terra, porque ela é fruto dessas relações.

Sabemos que cada povo indígena tem sua cosmologia e seus costumes, mas os Aliados também perguntaram como os povos originários e sua visão de mundo podem contribuir para a construção de uma sociedade onde a vida seja valorizada e os direitos de cada ser humano, respeitados.

Tem muitas formas de responder isso. Uma delas é falar da crítica da economia política que é feita quando os indígenas mostram que não basta você atender interesses individuais. Se você está atendendo interesses individuais – de uma pessoa, de uma empresa, de grupos políticos – em detrimento do bem de uma coletividade, você está promovendo morte.

Outra via possível seria entender que, em geral no pensamento indígena, toda terra é viva e, sendo viva, ela é habitada por animais, espíritos e outros tantos, e também tudo que existe na terra é ligado. Então a terra e o território não são só uma fonte de recursos a serem explorados ao esgotamento. Essa ecologia própria do pensamento indígena é algo que, se a gente levar a sério, pode mudar o paradigma da exaustão da terra, da terra como planeta.

Uma terra indígena nunca é uma terra qualquer por vários motivos. Os indígenas fazem casa nela, não só casa como um teto em cima onde você vai morar, mas aquela casa onde você pode existir. E você existe em composição com esses vários seres e nessas relações entre todos, nessa ecologia própria do habitar o território.

E o nosso planeta Terra é a nossa casa, mas a gente não tem encarado dessa maneira e tem tido uma uma relação destrutiva de esgotar o planeta. É como se a gente estivesse destruindo a nossa própria casa. A gente teria muito a aprender com os indígenas, se a gente conseguisse encarar nosso planeta como nossa casa da mesma maneira que eles encaram as terras indígenas como casa. Se a gente parar de destruir a nossa própria casa, e com isso parar de gerar as catástrofes que a gente tá vivendo.

Uma Aliada perguntou por que o modo de vida dos povos originários incomoda tanto, não só quem tem um interesse econômico naquelas terras? Por que os não indígenas ainda têm uma certa obsessão em impor sua própria visão de “progresso” e “desenvolvimento” para os indígenas?

Eu acho que, antes de tudo, tem o racismo que tá no DNA desse país. Até hoje, tem gente que acha que os indígenas são primitivos e que vivem de uma maneira horrorosa, vivem na pobreza. O mesmo racismo que, inversamente, vai achar que “como assim, indígena tá usando celular?”. É o mesmo tipo de pensamento que acha que eles são primitivos. Às vezes, esse pensamento se manifesta de formas menos escancaradamente grotescas, mas tão perversas quanto, como “nossa, coitados dos índios, eles vivem numa maneira tão precária, a gente tem que levar as coisas boas da nossa civilização para eles”. É o mesmo pressuposto etnocêntrico, só que colocado de uma maneira diferente.

Incomoda porque a diferença ainda incomoda muito. Principalmente por falta de compreensão. Existe uma falta de compreensão muito grande de que cada povo vive da sua maneira. Quem parte do pressuposto de que os indígenas não deveriam ser como são e deveriam ser como ele mesmo não está se questionando sobre o seu próprio modo de vida. O nosso modo não indígena e urbano de viver é um modo, não é o modo de viver.

Outra coisa que vale falar é que mesmo o campo progressista não leva a sério uma mobilização indígena como as que aconteceram no ano passado, o Acampamento Terra Livre que aconteceu nesse ano, como uma luta política contra o genocídio. O que mais se viu no passado foi gente ignorando deliberadamente os acampamentos indígenas naquela época de mobilizações contra o governo Bolsonaro, como se fosse outra coisa que os indígenas tivessem fazendo. E aí fala “nossa, tá lindo o acampamento indígena, tá linda manifestação indígena”, como se aquilo não fosse política. Como se os indígenas, quando estão ali com as suas pinturas corporais, com seus adereços, com as suas línguas, com as suas danças, com as suas falas, não tivessem fazendo política também. Eles estão fazendo uma afirmação política da diferença e falando “nós existimos, somos muitos, somos diversos, temos a força da nossa cultura aqui e queremos permanecer assim, dessa maneira, exigimos nosso direito de viver na nossa diferença, nos opomos a essa força de apagamento da diferença”.

Se o Bolsonaro perder a eleição e assumir um novo governo, você acha que é possível conter e reverter o avanço dos ataques aos direitos indígenas e do garimpo legal que aconteceu nos últimos anos? 

Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Conter esse avanço, eu quero crer que sim. Eu sou otimista o suficiente para acreditar que, se o Lula ganhar, a fiscalização ambiental vai ser fortalecida novamente, a gente vai ter quadros qualificados nos órgãos competentes para fazer uma política indigenista de verdade, que vai ter espaço para fazer um trabalho consistente nos territórios, e que a gente pelo menos vai parar de ser tão atacado.

Resolver vai depender muito de um compromisso sério do próprio presidente de lidar com o bicho de sete cabeças do garimpo. Vai depender também de uma responsabilização das outras instâncias que estão implicadas nesse problema, então vai precisar que os órgãos internacionais e os países se movimentem, por exemplo, em relação à compra de ouro legal. Vai depender também de um Legislativo menos hostil. A gente precisa realmente de um esforço em muitas escalas. É todo um jogo de forças que definitivamente não se resolve só com um presidente e que depende de uma compreensão profunda e sistemática do problema.

*Colaborou Letícia Gouveia

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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