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A difícil agenda do gasto público no Brasil

Mesmo com a contenção de R$ 15 bilhões, houve aumento na projeção total de despesas; gasto primário federal deve crescer, em valores correntes, R$ 192,1 bilhões em relação a 2023

por Daniel Couri em 02/08/24 12:34

Mesmo com a contenção de R$ 15 bilhões, houve aumento na projeção total de despesas | Foto: Pixabay

No dia 18 de julho, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou uma contenção de R$ 15 bilhões do Orçamento da União. De certa forma, a declaração veio em tom de resposta à cobrança por medidas do lado do gasto público. A essa altura, já está bastante claro que qualquer processo de consolidação fiscal não poderá depender apenas de iniciativas pelo lado da arrecadação.

A fala do ministro externou uma decisão que, a rigor, partiu da Junta de Execução Orçamentária (JEO), colegiado que assessora o Presidente da República na condução da política fiscal do governo federal. Além do ministro da Fazenda, compõem a JEO o ministro-chefe da Casa Civil, a ministra do Planejamento e Orçamento, e a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

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A medida pareceu esfriar os ânimos de quem anseia por uma agenda mais agressiva na contenção do gasto público. Na manhã seguinte, bolsa para cima, dólar para baixo.

Mas o anúncio não se referia exatamente a um corte de despesas, como chegou a ser noticiado logo em seguida. Na realidade, o relatório oficial do governo, publicado no dia 22 de julho, mostrou o contrário: um aumento de R$ 20,7 bilhões na projeção de despesas primárias da União em relação à avaliação de maio (despesas primárias não consideram juros e encargos da dívida). Se o ano terminar como atualmente espera o governo, o gasto primário federal crescerá, em valores correntes, R$ 192,1 bilhões em relação a 2023 e R$ 419,9 bilhões na comparação com 2022. Descontando a inflação no período, seria um avanço de cerca de 13% em apenas dois anos.

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Vale lembrar que a preocupação com a magnitude do gasto não surge do éter. Ela nasce da percepção de que o endividamento público, hoje em 77,8% do PIB, é elevado para economias emergentes. Segundo o FMI, na média, esse conjunto de países tem uma dívida cerca de 17 pontos percentuais do PIB mais baixa do que a brasileira. Para controlar o endividamento, a atenção com o comportamento da despesa é indispensável.

E por que, mesmo com a contenção de R$ 15 bilhões, houve aumento na projeção total de despesas? Isso ocorre, em boa medida, porque a maior parte da contenção, R$ 11,2 bilhões, foi, na realidade, um bloqueio de despesas discricionárias para adequação ao limite de gastos primários instituído pela Lei Complementar 200/2023 (despesa discricionária é aquela que não decorre de lei ou da Constituição). O bloqueio é utilizado quando a nova projeção de despesas primárias supera o limite legal.

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Portanto, o bloqueio não reduz em nada o valor global da despesa: ele encaminha o cancelamento de despesas discricionárias apenas como forma de compensar o crescimento na projeção de despesas obrigatórias. O efeito é nulo.

Além do bloqueio, a contenção de R$ 15 bilhões também considera o contingenciamento de R$ 3,8 bilhões. Se o bloqueio é o instrumento utilizado para o cumprimento do limite de despesas primárias, o contingenciamento é aquele utilizado para o cumprimento de outra regra fiscal, a meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros e encargos da dívida). Assim como o bloqueio, o contingenciamento recai sobre despesas discricionárias, mas representa uma redução efetiva de despesas porque, mesmo com o bloqueio na conta, as projeções não indicavam o cumprimento da meta de resultado primário.

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Apesar do contingenciamento de julho, a projeção para o gasto primário de 2024 continua crescendo. Isso porque o gasto total ainda deve considerar as despesas que não são computadas no resultado primário, notadamente as decorrentes da calamidade pública no Rio Grande do Sul. Essas despesas hoje somam R$ 28,8 bilhões e cresceram R$ 15,8 bilhões em relação à avaliação publicada em maio.

Nós temos uma história de ajustes fiscais baseados em contingenciamentos e cortes de despesas discricionárias. Esse tipo de ajuste costuma afetar investimentos sem arrefecer pressões futuras sobre o gasto total. Além disso, o contingenciamento é instrumento de curto prazo que prejudica o planejamento dos diversos ministérios executores de políticas públicas.

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Ou seja, a agenda do gasto público terá que ir além. E não é que o governo esteja inerte nesse sentido. O projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, enviado ao Congresso em meados de abril, trouxe o resultado de um primeiro ciclo estruturado da chamada revisão de gastos no orçamento federal.

Em essência, a revisão de gastos é um instrumento de política fiscal que busca conectar o universo da avaliação de políticas públicas ao universo orçamentário, mostrando oportunidades de reduzir ou redirecionar gastos em áreas de baixa prioridade ou em políticas ineficientes. A literatura sobre o tema evidencia que ajustes fiscais baseados em avaliações de políticas públicas proporcionam economias de maior qualidade e mais duradouras do que reduções generalizadas de gastos para mero efeito de cumprimento das regras fiscais.

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Nesse primeiro ciclo de revisão de gastos do governo federal, os alvos escolhidos foram benefícios previdenciários geridos pelo INSS e o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro). A economia esperada é de R$ 7,2 bilhões em 2025 e R$ 28,6 bilhões na soma dos próximos quatro anos.

A revisão de gastos é positiva e quase consensual. Em tese, ninguém se opõe a melhorar a qualidade do gasto por meio, por exemplo, da redução de fraudes e outras concessões indevidas de benefícios. Além disso, não se trata de ajuste focado apenas em despesas discricionárias. O cancelamento de benefícios previdenciários e assistenciais ilegítimos, por exemplo, reduz permanentemente a despesa obrigatória da União.

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Mas a revisão de gastos é tão salutar quanto insuficiente. Para que se tenha uma ideia, a economia de R$ 7,2 bilhões indicada para 2025 representa 0,3% do gasto primário total.

Para efetivamente conter o crescimento do gasto público, é inevitável mudar as regras que ditam sua evolução. Isso é possível, mas demanda tempo e uma grande capacidade de negociação com o Legislativo. No fim do dia, é ele o responsável por nossas escolhas alocativas.

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Um outro problema, e talvez o maior deles, é que o próprio governo dá sinais mistos na agenda fiscal. De um lado, a defesa de um regime ancorado na meta de resultado primário e na limitação do crescimento dos gastos. De outro, a aprovação de medidas com impacto expressivo e permanente na despesa, como a política de valorização do salário mínimo, e a falta de uma discussão séria sobre a dinâmica dos mínimos constitucionais de saúde e educação.

Na falta de reformas estruturais no gasto público, continuaremos reeditando um passado de ajustes paliativos e ineficazes.

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