Parlamentares têm bilhões de recursos à disposição para a execução de emendas parlamentares, papel tradicionalmente reservado ao Poder Executivo
por Clara Marinho em 01/08/24 14:01
Sede do Congresso Nacional, em Brasília, em foto datada de 9 de julho de 2011 | Foto: Wikipédia
O orçamento federal pode ser definido como lei anual que estima as receitas e fixa as despesas da União. Possui quatro fases em que Poder Executivo e Legislativo se alternam: elaboração, aprovação, execução e controle. Nesse sentido, é uma peça técnica, que viabiliza a administração cotidiana e os planos de governo; e uma peça política, na medida em que é discutida e avaliada por agentes políticos eleitos pelo voto. Em formulação complementar, o orçamento pode ser definido como uma instituição que estrutura a implementação de políticas públicas, sendo um vetor ou veto de seus objetivos programados. Finalmente, o orçamento pode ser definido como síntese do conflito distributivo, na medida em que as decisões sobre a alocação de recursos limitados se relacionam às condições de vida de diferentes grupos sociais e de rentabilidade dos setores econômicos.
Nos últimos anos, o orçamento público tem sido palco privilegiado do conflito distributivo na sociedade brasileira. Entre as dimensões de sua expressão está o duplo movimento de engessamento e fragmentação da despesa discricionária – a despesa que o gestor decide quando e como executar – pela via das emendas parlamentares. Em outras palavras, o Poder Legislativo tem avançado sobre a decisão de como alocar recursos orçamentários, papel tradicionalmente reservado ao Poder Executivo.
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Existem três tipos de emendas alocativas à disposição do Congresso Nacional: as emendas individuais, de bancada e de comissão. As emendas individuais são propostas por cada senador ou deputado e têm caráter impositivo, isto é, são de execução obrigatória conforme a Constituição. Em 2015, poderiam totalizar até 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL). Desde 2022, podem totalizar 2% da RCL. Dos recursos, 50% são obrigatoriamente alocados na saúde. Em 2019, foram criadas as transferências especiais, mecanismo de repasse direto e sem finalidade definida das emendas individuais a Estados, Distrito Federal e Municípios. Em 2024, a dotação das emendas individuais é de pouco mais de R$ 25 bilhões.
As emendas de bancada dos Estados e Distrito Federal são de autoria coletiva destas, endereçando matérias de seu interesse. Impositivas desde 2019, são limitadas a 1% da RCL. Em 2024, sua dotação é de R$ 8,5 bilhões.
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Já as emendas de comissão são propostas pelas comissões permanentes de cada casa do Congresso e de sua comissão mista. Neste ano, sua dotação é de R$ 15,5 bilhões. Os parlamentares têm buscado concretizar a impositividade para as emendas de comissão por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), emulando o movimento que levou à constitucionalização das emendas individuais e de comissão. Juntas, as emendas parlamentares alcançaram valor tão expressivo no orçamento que hoje há bancadas com mais recursos à disposição do que 14 ministros de Estado, conforme evidenciou recentemente o jornal Valor Econômico.
Também devem ser mencionadas as emendas do relator-geral do Orçamento. Conceitualmente, elas têm a finalidade de corrigir erros, recompor verbas cortadas e seguir as recomendações de pareceres preliminares de análise do projeto de lei orçamentária. O Congresso ampliou o poder alocativo do relator em 2020, sem identificar os parlamentares originalmente proponentes de novas despesas públicas, nem seus beneficiários – movimento que ficou conhecido como “Orçamento Secreto“. Em 2022, as emendas de relator movimentaram cerca de R$ 7,5 bilhões de reais em valores atualizados. No fim deste mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a iniciativa inconstitucional.
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Entre os argumentos mobilizados na legitimação das emendas, encontram-se os históricos contingenciamentos e cortes feitos pelo Poder Executivo desarticulados dos interesses parlamentares, mais o conhecimento dos congressistas das realidades de onde vêm. Por outro lado, há que se ponderar que a organização setorial do Poder Executivo é o que garante seu profundo conhecimento sobre as políticas públicas e seus beneficiários, bem como a atenção aos seus resultados e ao enfrentamento das desigualdades (sociais, econômicas, regionais etc). Simplificando o argumento, um Poder tem estado mais atento às árvores, enquanto outro, à floresta.
O avanço do Congresso sobre a alocação de recursos discricionários tem ensejado a produção de estudos na academia. Aqui destaco dois. Alexandre Baião, Cláudio Couto e Vanessa Elias, em artigo científico publicado em 2019, ao avaliarem a qualidade do gasto das emendas individuais, demonstraram que as localidades com maior carência de recursos na saúde são justamente aquelas que recebem menor montante. Já Rodrigo Faria, em estudo mais amplo sobre o processo orçamentário, chegou à conclusão em sua tese defendida em 2023 que a impositividade das emendas, estabelecidas em resposta à autonomia de sua liberação pelo Poder Executivo, restringiram a capacidade de qualquer governo em alinhar interesses e implementar sua agenda pela via da despesa discricionária.
A crescente influência do Legislativo na decisão alocativa, que hoje alcança 20% do total da despesa discricionária – cerca de R$ 49,2 bilhões – parece nos conduzir a um orçamento mais fragmentado. Se de um lado, essa disputa está articulada ao atendimento de demandas locais, de outro, é preciso assegurar que essas alocações estejam ancoradas no planejamento público, na efetividade de políticas públicas, na eficiência do gasto e no equilíbrio federativo. A pergunta que se coloca é: o quanto elas estão?
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