Grupo de empresários quer comprar 20 milhões de doses de imunizantes. Infectologista diz que iniciativa empresarial esbarra em questões de saúde pública
por Letícia Macedo em 22/03/21 20:40
O bilionário Carlos Wizard, que lidera um grupo de empresas que planeja a compra de 20 milhões de vacinas contra Covid-19 no mercado internacional, avalia que o projeto de lei que autoriza empresas a comprarem os imunizantes impõe condições que inviabilizam os esforços da iniciativa privada.
Wizard afirmou ao MyNews que irá a Brasília, junto com Luciano Hang, se encontrar com o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, nesta terça-feira (23) para discutir a flexibilização da regra atual que prevê, entre outras condições, a doação de 100% das doses adquiridas pelos empresários ao Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto estiver sendo vacinado o grupo prioritário, composto de 77,2 milhões de pessoas.
Embora tenha sido anunciado como substituto do general Eduardo Pazuello, a oficialização de Queiroga ainda não foi anunciada pelo Diário Oficial da União. Wizard colaborou de maneira informal com a gestão de Pazuello e chegou a afirmar, em 2020, que os estados supostamente estavam inflando o número de mortos por covid-19 para conseguir maiores orçamentos. Diante da repercussão de sua fala, o empresário anunciou que deixaria de coloborar com o Ministério da Saúde.
A atual legislação em vigor, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 10 de março, prevê que o setor privado, assim como estados e municípios, podem adquirir diretamente dos laboratórios vacinas que tenham autorização para uso emergencial ou registro definitivo concedidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, o texto determina também, após a vacinação do grupo prioritário, a doação ao SUS de 50% das doses e a aplicação gratuita das outras 50%.
Wizard afirma que os empresários não se opõem à doação de 50% das doses ao SUS, mas questiona a entrega de todos os imunizantes adquiridos enquanto o grupo prioritário é vacinado.
“Não temos nenhuma intenção de furar fila. Ao contrário, queremos fazer um trabalho paralelo, simultâneo, concomitante com o SUS. Nós prevemos comprar, inicialmente, 10 milhões de doses só para atender os nossos colaboradores e estamos dispostos a fazer a doação de mais 10 milhões de doses. No entanto, a legislação que está em vigor não nos permite. Essa lei só dá o amparo [para importação] depois que 77 milhões forem imunizados”, afirma Wizard.
“O SUS está priorizando 1/3 da população. Não queremos de forma alguma afetar ou interferir no trabalho do SUS, mas também não se pode excluir os outros 2/3. Nós vamos atender o restante da população”.
Até sábado (20), pouco mais de 11 milhões de brasileiros tinham recebido a primeira dose da vacina. Porém, infectologistas dizem que cerca de 170 milhões devem ser imunizados para contermos a pandemia.
Essa lentidão no programa de imunização em massa preocupa o empresário.
“Se analisar friamente, há risco de passar 2021 e não conseguir imunizar toda a população. É por isso que nós defendemos deixar o SUS colocar em prática o calendário de imunização planejado e nós termos a autonomia de fazer a aquisição e a aplicação das vacinas simultaneamente”, afirma.
Wizard conta que ele e o empresário Luciano Hang irão expor o plano deles ao ministro da Saúde na terça-feira (23). “Estamos trabalhando com a Casa Civil, com o presidente da República para fazer uma flexibilização dessa portaria que nos permita doar as vacinas. Do contrário, nós vamos ficar de mãos atadas até o fim do ano. Eu acho que o Brasil é o único país que tem empresários querendo doar vacina para a população e o sistema não permite. Nunca vi uma coisa dessas em nenhum país do mundo”.
Wizard não dá detalhes sobre o grupo que lidera com Luciano Hang, mas afirma que é composto por empresas nacionais e internacionais que atuam em diversos setores nas regiões sul, sudeste e centro-oeste. Ele também não revela com quais laboratórios está negociando, mas diz que o que importa é a eficácia, segurança e o preço, e não o país de origem do imunizante.
“O que nós não queremos é passar o ano inteiro em casa, com as empresas fechadas, com o Brasil parado. Qualquer preço que a gente tenha que pagar para voltar à normalidade é barato em comparação com o prejuízo que nós temos todos os dias. E a matemática é simples: o empresário vê o prejuízo e nós, como patriotas, vemos as mortes, porque hoje, lamentavelmente, nós estamos perdendo 2 mil brasileiros por dia.”
Clínicas privadas de vacinação fazem parte de um outro grupo que busca adquirir imunizantes contra a Covid-19.
O presidente da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVac), Geraldo Barbosa, conta que o setor já tem um contrato de intenção de compra de 5 milhões de doses de Covaxin, imunizante desenvolvido pelo laboratório indiano Bharat Biotech.
Esse acordo, ainda de caráter provisório porque a vacina ainda não tem a aprovação da Anvisa, pode ficar em risco caso nada seja alterado no texto da legislação.
Na avaliação do setor, que é regulamentado por uma lei específica da saúde suplementar, o fato de terem sido colocados no mesmo grupo de empresas, como as lideradas por Wizard e Hang, inviabiliza a compra dos imunizantes.
“A redação da lei virou uma confusão, porque nós poderíamos ser, inclusive, o segmento que venderia as vacinas para essas empresas [do grupo do Wizard]. Mas essa lei torna inviável trazê-las, o que é um desserviço para o Brasil em um momento em que mais se precisa da nossa colaboração”, afirma Barbosa.
Na avaliação do presidente da ABCVac, a liberação da comercialização para as clínicas de vacinação poderia desafogar a fila do SUS. “É o que já fazemos com a vacina da influenza. Aplicamos 8 milhões de doses em três meses anualmente. Com relação à vacina influenza, a avaliação é a de que a gente ajuda, mas com a da Covid-19 é de que a gente está tentando furar fila.”
Barbosa afirma que o laboratório indiano tem interesse em vender para as clínicas brasileiras, que anualmente vacinam 14 milhões de pessoas.
Segundo o presidente da ABCVac, as doses da Covaxin foram destinadas pelo laboratório indiano para empresas privadas e não concorreriam com doses destinadas aos governos. “As 5 milhões de doses são uma reserva inicial, mas eles terão capacidade de produzir 40 milhões só para o mercado privado. Se essas vacinas não vierem para o Brasil, irão para outro país”, lamenta.
O setor aguarda um parecer formal da Anvisa com relação à nova lei. “Estamos avaliando propor um projeto de lei que tira o mercado regulado dessa bagunça. O último caminho seria questionar judicialmente.”
O diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José David Urbaéz, faz críticas sobre a entrada da iniciativa privada na negociação de vacinas e defende que é função do Estado promover a imunização em massa.
“Esse tipo de iniciativa não acontece em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, que são grandes países capitalistas. Não tem nenhum país que não entenda que vacinação é uma questão de Estado. Pandemias só terminam por ações políticas dos Estados. Não existe outra saída”, afirma o infectologista.
Urbaéz cita o exemplo do Estados Unidos, onde grandes empresas participaram de um fundo público-privado decisivo no desenvolvimento de vacinas.
“Os Estados Unidos são o berço do capitalismo. Lá tem grandes empresas que poderiam assumir iniciativas semelhantes. O que fizeram? Um grande consórcio com dinheiro do Estado e das grandes empresas. Foi esse consórcio que produziu de um lado a vacina da Moderna, além de investir nas da Pfizer, da Janssen”.
O infectologista ressalta que o Brasil é um país “extremamente desigual” com uma capacidade enorme na gestão da saúde pública.
“O único ente da sociedade que tem a visão epidemiológica é o Ministério da Saúde, é o SUS. Nós conhecemos a realidade, sabemos onde está acontecendo cada tipo de transmissão. Nós fomos treinados e sempre fomos responsáveis por uma atividade extremamente complexa que é a vacinação”, observa.
“Quando entra na jogada a iniciativa privada com o objetivo de vacinar os seus colaboradores, ela acaba privilegiando pessoas que não têm o mesmo risco de morte ou as mesmas dificuldades de acesso à saúde da população em geral. Isso é um problema ético de primeira ordem.”
O infectologista enfatiza que a vacinação precisa ter escala para que a população seja protegida.
“Nós queremos vacinas para todos para conter a pandemia. Precisamos vacinar 70%, 80% da população, o que significa vacinar em torno de 170 milhões de pessoas no Brasil. Você não atinge isso vacinando grupos específicos de funcionários. Restringir a imunização a um grupo decidido por uma iniciativa “X” não vai ter impacto algum na pandemia.”
O infectologista ainda ressalta que a vacinação restrita a pequenos grupos pode trazer como consequência o aparecimento de mutações do Sars-Cov2 cada vez mais resistentes.
“Nossa preocupação é que essa situação de vacinações parciais não são boas, porque podem promover nichos de seleção de vírus mutantes. Ainda não sabemos se a vacina impede totalmente a infecção. Se só uma parcela pequena da população está vacinada, o vírus convive com esse grupo e passa a sofrer mutações para ultrapassar esse sistema de defesa. Para ser efetiva, o ritmo de vacinação tem que ser acachapante para evitar a pressão seletiva que a vacina possa vir a ter”.
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