Preliminarmente, a natureza e o contexto políticos sobre o conflito.
por Alexandre Van de Pol em 14/07/22 11:46
Após troca de tiros, a polícia afirma a necessidade de verificar a hipótese de o conflito ter motivação política; a aliança política “socio-neoliberal” entre Lula e Alckmin (PT, PCdoB, PV, PSB, PSOL, Rede e Solidariedade) sai à frente da narrativa anunciando motivação política; e Bolsonaro, logo em seguida, anuncia motivação
ordinária.
Ainda que a fatalidade tenha ocorrido evidentemente em um aniversário de temática política e que, segundo relatos, o agressor tenha aberto fogo exaltando Jair Bolsonaro, não é razoável pressupor que dois policiais precipitariam um conflito potencialmente fatal sem qualquer histórico. Histórico que parece morar na relação de ambos com a entidade onde ocorreu o fato.
Em entidades de fim social, há um perene debate sobre a função ou associação política dessa entidade com partidos, sujeitos ou ideologias. Muitas, fundadas recentemente, são registradas ou motivadas politicamente, sendo seu fim social atrelado a um nicho político determinado. Esse não parece ser o caso da entidade “Saúde Física Itaipu”.
Esse campo de poder, portanto, era de disputa, tal como ocorre comumente em praticamente todos os clubes esportivos do país com alguma dimensão relevante, ainda que regionalmente.
A baixa politização brasileira, provocada pelas perseguições políticas durante as ditaduras do século XX, tem como uma consequência a formação de espaços sociais de comunidade pretensamente neutros politicamente. Com a recente politização, se instalou uma perene disputa política desses espaços. Os espaços aparentemente neutros, que na verdade estavam alinhados ao poder vigente regionalmente mais relevante, passam a abrigar uma disputa política perene que reflete a disputa política de seu contexto externo. Por princípio, os campos sociais refletem mais a politização da sociedade em que se insere, quanto mais novos forem a politização ou o campo social analisados.
Supondo a existência dessa disputa política dentro da entidade e supondo o papel administrativo de ambos envolvidos, a realização de um evento de temática política é interpretável pelos não-admiradores de Lula como uma provocação, pois o mesmo evento é interpretável como uma manifestação política da própria entidade por não-membros, que é justamente o resultado repudiado pelos membros não-admiradores. Noutras palavras, é violenta consequência da disputa sobre o posicionamento político da entidade e, consequentemente, sobre a influência política dela sobre seus membros e adjacências.
Quando escrevo, tento adjetivar somente aquilo a que quero dar relevância, no caso, as relevâncias estão sobre a hipocrisia de Lula e Alckmin, e seus aliados, agirem contra essa violência dada sua relação com ela; e a impossibilidade prática de juridicamente impedir futuras manifestações pró-violência de Bolsonaro, e.
Desde 2017, a todas as forças políticas foram evidenciadas a propensão à violência que Bolsonaro possuía. O medo de um golpe se instalou desde o fim do primeiro turno. A redução do debate no segundo turno, então, ocorreu sob a promessa de um governo tecnocrata, restando a natureza moral dos candidatos. Haddad era um político fracassado com pauta timidamente identitária e Bolsonaro era um não-político-político fracassado com pauta fortemente conservadora e penalista — ironicamente, o PT é o governo recordista mundial em aprisionamento populacional do século XXI. Ganhou quem sabia dizer o que queria dizer, perdeu quem mal era alguém e que não sabia dizer nada por si só.
Lula historicamente é um político de não-enfrentamento, o que não é a mesma coisa que “pacifista”, suas campanhas eleitorais são tradicionalmente para falar de si e de seus valores morais. Isso teve como reflexo uma disputa política pela moralidade da administração pública, usando como fim prático – o “como fazer” – a promessa de uma governança paternalista. Em todos esses negritos, Lula, o PT e seus aliados perenes, PCdoB e PSB, falharam. E falharam não porque foram condenados judicialmente civil ou penalmente, mas porque socialmente Lula é reconhecido como corrupto, o maior da história brasileira. Na política, Lula cavou sua própria cova, só não caiu nela, ainda.
Lula preparou seu caixão para grande parte do eleitorado à esquerda e ao centro quando nem oficial, nem extra-oficialmente, agiu pelo impeachment de Bolsonaro. Como é sistematicamente repetido e reconhecido tacitamente por toda web e telemídia, Lula e Bolsonaro são pesos da mesmíssima dinâmica, o ódio.
Digo “extra-oficialmente”, pois a amplitude e a diversidade do movimento político de Lula lhe permite grande espaço de manobra e de estratagemas. Na dimensão extra-oficial, o líder tem a capacidade de destacar parte de seu eleitorado indireto, como o PSOL, para executar funções importantes à centralidade de seu poder. Assim, Lula realiza ações sem ser vinculado a ela mesma. É por isso que se atribui a Lula a invenção do “gabinete do ódio”, um modus operandi de manipulação para-midiática de destruição da concorrência política dentro das adjacências políticas daquele que ataca, mitigando concorrências.
Mesmo que todo o espectro político brasileiro tenha percebido Bolsonaro como um perpetrador regular de crimes de improbidade administrativa (e outros), e tenham tido lideranças ao longo desse espectro reagido a esses crimes, o próprio Lula não apenas não se movimentou, como coibiu centralmente a ação prática de seus “imediatos”, lhes permitindo, quando muito, uma ação oficial de “assinatura de pedidos de impeachment” ou “ações judiciais”.
O sonho de Lula ganhar as eleições em primeiro turno é sustentado por dois fenômenos. O primeiro, lido da psicologia social, é o medo de um rompimento do regime democrático por Bolsonaro. O segundo, lido pela ciência política, é o amadurecimento manipulado da politização da esquerda brasileira. Enquanto o rompimento é impossível por ausência de quaisquer apoios nacional ou internacionalmente, a manipulação do amadurecimento político brasileiro é perigosamente ocultada pelo interesse coincidente das forças econômicas e das forças políticas tradicionalmente gravitadas por Lula, o Centrão.
Esse medo é catalisador de alianças à esquerda. Seus líderes, interessados no arranjo político conhecido no qual governaram por 16 anos, precipitam sobre suas bases o interesse pela “sobrevivência do regime democrático”, justificando para correntes preocupadas com a moralidade administrativa o alinhamento ao maior partido da esquerda. Portanto, na medida em que esse medo perde relevância, por qualquer razão, Lula perde votos da base moralista. O restante da esquerda a ele alinhado ou é ingênuo ou os dois, o que parece ser o caso de Guilherme Boulos, do PSOL, que jogou seu partido na contramão de sua fundação, creditado pelo medo de rompimento do regime e pela covardia de agir contra esse rompimento.
Neste sentido, os apoiadores pragmáticos de Lula ficam felizes com a morte martírica de seu correligionário e os correspondentes de Bolsonaro, também, ainda que tenham que dar mais passos em direção à fantasia. A única coisa que reforçaria esse conflito, além de um aumento orgânico das tensões entre as bases políticas do lulo-bolsonarismo, seria a ação política de Lula em favor do conflito, daí a hipocrisia e a impossibilidade do sonho.
Muito contudo, nenhuma das correntes políticas de Lula é violenta ou revolucionária, nenhuma delas sequer é pragmática da inocência do próprio Lula, mesmo dentro do PT aguerrido — afinal, são esses aguerridos aqueles escusados dessa corrupção. Arrisco dizer que, à exceção de fanáticos políticos como o próprio Guaranho, a covardia na ação política é própria do lulo-bolsonarismo. São grupos quasi-terroristas, um de goela e outro eleitoral, tentando agir dentro da institucionalidade frágil de um país latino e autoritário que ainda tenta se descolonizar.
Os conflitos individuais com certeza vão crescer em número, mas estarão longe de ser relevantes na prática. Regionalmente, eles são até bem tradicionais no processo eleitoral brasileiro. O campo da disputa Guarano-Arruda até teve como estopim um evento político e um local de disputa política, mas na prática do direito penal, foi uma disputa entre duas pessoas motivada por ódio passional. Significa dizer que são duas pessoas apaixonadas por seus líderes mitificados e não dois grupos políticos se enfrentando com armas, por mais que pareça o segundo.
Pediram, ou ensaiaram pedir, uma “medida cautelar” contra o ambiente eleitoral no sentido de coibir declarações favoráveis ou instigantes de violência de qualquer natureza, tendo como alvo principal, Bolsonaro. Juridicamente, é uma medida vazia — além de provocar o emburrecimento coletivo. Legalmente, Bolsonaro não podia falar o que falou e fala desde 1988 quando se elegeu pela primeira vez. Jurisprudencialmente, há até mais precedentes legais a seu favor que contra.
A única ação contra Bolsonaro é a ação política clara e inequívoca de impedimento, tenha sido ele antes ou agora, às vésperas da eleição. A postura necessária para se manter uma democracia e a amadurecer permanentemente é enfrentar as ameaças, ainda que ignóbeis como a família Bolsonaro, terminando com ações, prendendo manifestações e condenando terroristas ou quasi-terroristas e seus líderes. O Poder Judiciário não é capaz de conter os acontecimentos atuais nem se estivesse plenamente legitimado socialmente, pois os motivadores da ação política de Bolsonaro permanecerão existente enquanto seu nicho, os Poderes eminentemente políticos do Executivo e Legislativo, se mantiverem voluntariamente no cabresto.
Ninguém vai sair em defesa de Bolsonaro, só Lula.
*Alexandre Van Der Pol é professor, Jurista e Analista em Ciências Sociais, mestre em Direito, Argumentação e Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFJF; Bacharel pelo programa Interdisciplinar em Ciências Humanas pelo Instituto de Ciências Humanas da UFJF.
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