Como dizem por aí, o mundo não gira, ele capota, e a história sempre teima em se repetir. É impressionante como o cenário no Chile caminha igual ao do Brasil pós manifestações de 2013
por Manoel Martins da Costa Júnior em 15/11/21 17:38
“No Chile, assim como no Brasil, a democracia renasceu sob vias institucionais e pacíficas, com muita paciência. Sua Constituição democrática, ao contrário, está sendo forjada de forma abrupta e selada sob sangue.”
O Chile vai viver suas eleições presidenciais este mês, um fato que deve ser acompanhado com peculiar interesse, pois é um decisivo pleito que ocorre logo após a ebulição social que tomou conta do país em 2019 e culminou com a elaboração de uma nova constituição, um processo mais que necessário, uma vez que, ao contrário do Brasil, os chilenos nunca haviam posto fim ao legado constitucional de sua respectiva ditadura.
Se a decisão por uma nova Constituição se mostrou mais que acertada, e ela foi aprovada com 80% dos votos, o que vem se desenrolando desde aí parece denotar uma saída de pista do processo, e não era difícil imaginar isso. Se no Brasil resolvemos pôr fim às lembranças da Ditadura Militar de modo rápido após o seu término, utilizando a política institucional e de modo pacífico, a demora dos chilenos para se livrarem do legado de Pinochet cobrou um preço caro: a nova Constituição chilena está nascendo sob sangue, foi forjada sobre uma verdadeira e violenta revolução popular, onde se notaram excessos tanto de manifestantes quanto do governo na repressão dos mesmos.
Radicalização gera radicalização. Na eleição para a Assembleia Constituinte a esquerda ganhou de lavada, era natural, já que a revolta se deu dentro de um governo de centro-direita, mas não foi aquela esquerda tradicional, a chamada Concertación, que tem como principais partidos o Socialista de Bachelet e a Democracia Cristã (este, um caso que considero peculiar no mundo, uma vez que tradicionalmente partidos que carregam a denominação cristã são associados à direita), que venceu a ditadura Pinochet sem derramamento de sangue e governou o Chile em praticamente todo período democrático desde então, a exceção dos dois mandatos de Piñera, mas sim uma versão mais jovem e radicalizada, bem de acordo com o cenário predominante que se via nas ruas.
Era natural que a esquerda colhesse os frutos de modo imediato, mas não era garantido que isso durasse para sempre. O cenário das explosões sociais é sempre incerto. Vejamos o que ocorreu no Brasil em 2013: manifestações que começaram pela convocação de um movimento radical de esquerda, desses que vemos quase toda a semana e têm absolutamente pouca repercussão e menos ainda gente, se transformaram em uma aglutinação de milhões de pessoas com pautas difusas e revolta contra tudo e todos.
O centro mais radical das manifestações talvez até tenha continuado com os que haviam iniciado tudo, mas o corpo já havia ficado grande demais e totalmente sem controle. E a esquerda quem pagou o pato, já que era ela que governava, e paga até hoje.
Como dizem por aí, o mundo não gira, ele capota, e a história sempre teima em se repetir. É impressionante como o cenário chileno caminha igual ao do Brasil pós manifestações de 2013, com os mesmos erros. O descrédito dos partidos tradicionais chilenos está a olhos vistos, independentemente da ideologia dos mesmos, tanto nas eleições constituintes como agora, nas presidenciais, assim como a desilusão com a política tradicional reverberou por aqui em 2018, ajudada pelos efeitos da Lava Jato. Se por estes lados nós parecemos sofrer com a catarse coletiva de 2013 até hoje, mesmo mais de oito anos depois, imagine lá, onde o cheiro de pólvora é sentido com toda a força e os paralelepípedos ainda estão mornos.
E aí que vem a chave do bingo: assim como cá, lá a direita populista de repente surgiu e começou a colher os frutos do desequilíbrio social! Os jovens radicais que queimavam igrejas podem até ter aplaudido os resultados iniciais de sua revolta, mas agora devem estar atordoados com os efeitos adversos que um cenário sem controle pode trazer. O Chile é um país mais bem educado que aqui, com uma consciência política maior, feridas muito mais abertas em relação a seu período militar e uma qualidade de vida de nos fazer inveja, mas não deixa de ter uma população média com características parecidas com a nossa, embora em um processo de evolução.
Seria inútil pensar que uma população que quatro anos atrás elegeu Piñera, de repente havia virado de extrema-esquerda, ou que a aprovação esmagadora do referendo constitucional implicava uma pureza e homogeneidade ideológica dos que votaram assim, apesar da extrema direita de apoiado o “não”. A questão constitucional era uma página que o Chile precisava virar e tenho certeza que ia muito mais além do que disputas ideológicas entre campos distintos, inclusive a direita tradicional também apoiou a mudança.
O que era fácil de se prever é que boa parte da população comum, também revoltada com a situação vigente, mas menos por ler Marx e mais por não ter dinheiro no bolso, de repente começou a ficar assustada com os valores dos que lideravam aquele processo e resolveu se voltar para alguém que exprime os seus desejos de mudança, mas ao mesmo tempo parece ter muito mais relação com os seus valores pessoais.
E assim cresceu José Antonio Kast, o novo fenômeno eleitoral chileno, que deve ir para o segundo turno, talvez até em primeiro lugar, contra Gabriel Boric, outrora e ainda favorito, e o representante dessa nova esquerda mais radical, numa espécie de aliança entre o que seria o PSol e o Partidão (PCB). São eles e não a antiga Concertación, ou o partido de Piñera, que vão antagonizar o pleito chileno e, um ou outro, governar o Chile nos próximos quatro anos.
Os candidatos tradicionais definharam completamente, engolidos pelo radicalismo do momento. Kast, que quatro anos atrás não teve nem 10% dos votos, agora cresce de forma assustadora. É um pinochetista convicto, e ganhou a degradante alcunha de Bolsonaro chileno. Aliás, foi um dos primeiros que visitou o presidente brasileiro após sua vitória. Os dois têm muito em comum e certamente seguem cartilhas parecidas de campanha, como é de praxe nessa direita populista.
O ultradireitista chileno parece se aproveitar de fatores parecidos que elegeram Bolsonaro: além de colher da insatisfação da população, também pode ser ajudado pelo contrário – um efeito de reação conservadora e também de voto útil das elites tradicionais chilenas, que migram para ele como alternativa menos pior do que ter um radical de esquerda no governo.
Boric, que derrotou um comunista mais radical ainda nas prévias de sua coalização partidária (aliás, bom de ser observar também o exemplo das federações que o Chile segue a tanto tempo e será adotado aqui a partir do ano que vem), parecia ter a vitória garantida, mas já não lidera com folga no primeiro turno; em alguns casos está até em segundo e vê sua vantagem na segunda volta se estreitar a passos cavalares. O cenário parece incerto.
Eu ainda acredito, ao contrário daqui, na vitória do esquerdista. Como disse, o Chile é mais bem educado e tem experimentado um grande avanço de valores sociais progressistas nos últimos tempos, mas nunca duvide da massa conservadora, que também é grande. Além disso, é difícil imaginar que um país que deu uma guinada tão grande à esquerda recentemente, se volte ao seu extremo oposto de forma tão rápida e abrupta. E lá ainda há o fator da votação não ser obrigatória, o que coloca como crucial a questão de mobilização e participação de cada setor social.
Porém, o fato de existir alguém a lá Bolsonaro com chances reais de vitória já diz muito sobre o processo, de como mudanças necessárias feitas por vias exclusivamente institucionais tendem a serem mais exitosas, duradouras e menos traumáticas, embora possam demorar mais. O Brasil mesmo e sua Constituição de 1988 são um exemplo vivo, embora tenha acabado por cair nas garras do populismo, devido a fatores já tanto citados.
O Chile, ao contrário, flerta com o seu bolsonarismo e mostra como o que começa radical não tende a terminar bem. Espero que consigam consertar a tempo e não cometam o erro crucial que cometemos e tanto tem nos custado nos últimos anos.
Manoel Martins da Costa Júnior é paraibano, formado em Administração pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), e pós-graduado em Gestão Empresarial pela Estácio de Sá
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