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ESPORTE E POLÍTICA

Sociedade Anônima do Futebol: Futebol, reificação e antirracismo

Em agosto de 2021 foi instituída e regulamentada a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), conhecida “clube-empresa”. A ponderação é sobre o mercado, que transforma até as lutas sociais em mercadoria.

por Walter Moreira Dias em 07/03/22 10:45

Estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, casa do Vasco da Gama. Foto: Reprodução (Twitter)

A Lei 14.193, de 06 de agosto de 2021, que instituiu e regulamentou a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), o conhecido “clube-empresa”, está promovendo grandes mudanças no cenário esportivo brasileiro. Cruzeiro e Botafogo foram os primeiros a serem adquiridos. Ao aprovar o modelo da SAF, o antigo clube associativo cria uma empresa, sem dívidas, que passa a ser responsável pelo futebol profissional e de base, tendo a obrigação de encaminhar uma porcentagem dos lucros para o clube associativo para sanar as antigas dívidas.

No caso de Cruzeiro e Botafogo, 90% das suas ações da Sociedade Anônima do Futebol foram compradas por Ronaldo e John Textor, respectivamente. Foi a saída encontrada para clubes que têm passivos na casa de 1 bilhão de reais. É notória a falta de democracia interna e os erros sucessivos de diversos presidentes, conselheiros e beneméritos em diversos clubes brasileiros por décadas, e o modelo da SAF tem se apresentado como solução neste contexto.

Desse modo, o conceito de reificação ajuda a interpretar este cenário. Reificação é o processo de transformação de tudo em objetos a serem consumidos. Chegamos ao ponto que os clubes e a paixão de milhões de torcedores possuem preço, e esse preço leva em conta o potencial de consumo da torcida. Mais do que nunca, torcedores serão clientes.

Jogador em cobrança de escanteio. Foto: Planet Fox (Pixabay)

Dito isto, o terceiro grande clube brasileiro a caminhar em direção da Sociedade Anônima do Futebol é o Vasco da Gama. No dia 21 de fevereiro deste ano, o clube assinou um pré-acordo de venda de 70% de ações de sua futura SAF com a 777 Partners, uma holding estadunidense que possui ativos na casa de R$ 50 bilhões.

Um adendo ao contexto da reificação veio na entrevista do sócio-fundador da 777 Partners, Josh Wander, ao Globo Esporte no dia 23 de fevereiro. A razão principal para escolha do Vasco foi a tradição e a história do clube em quebrar barreiras sociais e raciais.

Convém lembrar que em 1923, em seu primeiro ano na divisão principal do futebol carioca, o Vasco foi campeão com doze jogadores negros e pobres em seu elenco. Por não possuir estádio próprio, mesmo tendo sido campeão, foi proibido de se filiar ao novo campeonato criado equivalente à 1ª Divisão em 1924. Contudo, essa decisão poderia ser revertida caso estes doze jogadores não estivessem mais no elenco vascaíno.

Em carta endereçada à nova associação no ano de 1924, o então presidente do Vasco, José Augusto Prestes, recusou a proposta e o Vasco foi, na prática, rebaixado, jogando com clubes de menor expressão da 2ª Divisão, mesmo tendo se sagrado campeão no ano anterior. Ali iniciou-se uma campanha para construção do estádio de São Januário financiado por carnês dos próprios torcedores.

A fala de Josh Wander valoriza este passado do Vasco, mas também menciona o foco de seus investimentos com a holding: trabalhar na valorização de seus ativos para a posterior revenda em médio ou longo prazo.

Time do Vasco campeão carioca em 1923. Foto: Arquivo (CRVG)

A questão que fica é: a história do Vasco servirá para mobilizar a luta antirracista e contra outras formas de opressão? Ou a luta antirracista do passado será também reificada para se tornar objeto que irá auxiliar a holding estadunidense a recuperar seu investimento?

Neste sentido, o escritor francês Guy Debord (1931-1994), também pode ser lembrado. Ele criou a expressão “Sociedade do Espetáculo” que se estrutura sempre focando na aparência para estimular desejos de consumo. Não precisa “ser”, basta “aparentar”. E ainda vemos como cada vez mais se lucra a partir isso.

Vale mencionar que essa reificação não é exclusividade do modelo SAF no Vasco. O clube que se orgulha de ser vanguarda na luta contra opressões, e coloca à venda diversas camisas e utensílios alusivos às causas sociais, também carece de diversidade internamente no clube associativo.

A reunião do Conselho Deliberativo de 24 de fevereiro, que aprovou o empréstimo-ponte de 70 milhões da 777 Partners ao Vasco da Gama, demonstrou, ao vivo pelo YouTube, como a luta em defesa da diversidade e igualdade ainda tem longos caminhos a serem atingidos na prática. Dos mais de 200 conselheiros presentes, raros eram negros e mulheres.

Ainda temos um grande percurso para as que lutas sociais no esporte contemporâneo não sejam somente mercadorias a serem exploradas comercialmente.

*As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews

Quem é Walter Moreira Dias?

Professor, graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua na Secretaria de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) e na Secretaria Municipal de Educação de Maricá (SME-Maricá).


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