Isto se torna especialmente perverso em uma época de fake news. Tenho sido confrontado com vários exemplos de Efeito Mandela em relação aos últimos 4 anos de caos político.
por Aniello Olinto Guimarães Greco Junior em 26/09/22 09:57
Segundo a história popular, há momentos que ficam marcados em nossa memória como sociedade, que mesmo décadas depois lembramos com precisão e detalhes o que aconteceu. Por exemplo, os americanos mais velhos costumam a falar que todos se lembram em detalhes como receberam a notícia do assassinato do Presidente Kennedy.
Eu tinha para mim que o 11 de setembro tinha um efeito parecido em minha geração, no mundo inteiro. Eu lembro em detalhes como fui acordado pela ligação de um amigo, que em um fluxo de palavras atropeladas me pedia para ligar a TV. Eu não conseguia entender metade do que ele falava, algo sobre os Estados Unidos estarem sendo atacados. Aí eu liguei a TV, e fiquei uns dois minutos sem fala… Lembro vários detalhes do que aconteceu naquele dia, como poucos dias de minha vida.
Mas o quanto disto é real? Existem uma legião de brasileiros que lembram estarem assistindo um episódio de Dragon Ball Z, no momento em que Goku conseguiria atingir o nível de Super Sayajin 3 no duelo contra Majin Boo, e o programa ter sido interrompido para noticiar o atentado terrorista. O detalhe: isto nunca aconteceu. Na época o anime entrava no ar as 11:15, e o atentando ocorreu as 9:45. Mesmo assim milhares juram se lembrar exatamente do desenho ser interrompido neste momento específico.
É um exemplo brasileiro do que se batizou por Efeito Mandela, um caso extremo de formação de memórias falsas. O nome dado ao fenômeno se deve ao fato de muitos ao redor do mundo terem se surpreendido quando Mandela morreu em 2013. Eles se lembravam nitidamente que Mandela já estava morto desde a década de 90. Alguns se lembravam inclusive de ter assistido o funeral pela televisão.
Muitos apelam para teorias místicas ou conspiratórias para explicar este estranho fenômeno, mas a causa é muito simples: uma história falsa, mas interessante, que ganha popularidade por qualquer razão, pode nos fazer mudar nossa própria memória do que aconteceu conosco. Por exemplo, se você se lembra sem muitos detalhes de estar assistindo um programa infantil que foi interrompido, e outro colega te conta que assistia um desenho específico, você pode ser induzido a acreditar que estava vendo aquele desenho.
Isto deve nos servir de alerta para sermos um tanto humildes quanto ao que acreditamos saber. Em alguns casos devemos ir além de São Tomé, e desconfiar até mesmo do que lembramos ter visto e sentido. A pessoa que enganamos de modo mais eficiente é a nós mesmos.
Isto se torna especialmente perverso em uma época de fake news. Tenho sido confrontado com vários exemplos de Efeito Mandela em relação aos últimos 4 anos de caos político. O mais extremo se refere as pesquisas eleitorais de 2018.
Foi uma campanha extremamente confusa. No início do ano o líder das pesquisas foi preso, e mesmo assim foi lançado como candidato a corrida presidencial. E teve sua candidatura cassada posteriormente. Além disto tivemos o atentado a faca contra seu principal concorrente. Foi portanto uma campanha com as pesquisas tendo de lidar com várias reviravoltas bem bruscas. Então é normal que alguma confusão em relação as memórias sobre quem estava na frente em qual pesquisa e qual momento é esperado.
O que não é esperado é a certeza de lembranças totalmente opostas por grupos diferentes. Muitos, entre eles este que vos escreve, lembram de ter escolhido votar em Ciro Gomes por este ser o único candidato que as pesquisas apontavam ter chances de vencer Bolsonaro em um segundo turno. Nós lembramos em detalhes que todas as pesquisas apontavam, após a saída de Lula, que Bolsonaro era o favorito em praticamente todos os cenários. Exceto no improvável segundo turno entre Bolsonaro e Ciro. O problema? Ciro era o terceiro colocado nas pesquisas.
Além disto lembro do medo que tinha de que Bolsonaro vencesse no primeiro turno, depois do tanto que ele subiu nas pesquisas após o atentado.
Outro grupo muito grande lembra em detalhes que todas as pesquisas indicavam durante toda a eleição que Bolsonaro seria derrotado. Mesmo após a vitória folgada no primeiro turno eles lembram que as pesquisas apontavam em Haddad como vencedor da eleição.
Este caso é fácil de verificar qual das memórias é falsa. Basta verificar os registros das pesquisas na internet. Mas a facilidade de verificar qual memória é real assusta ainda mais, pois mesmo assim a memória falsa persiste. Primeiro por não ser fácil admitir que você tem uma memória falsa, mas principalmente por que acreditamos não precisar conferir aquilo que lembramos como aconteceu. Pensar que eu estava lá, eu vi, eu me lembro pode ser uma armadilha.
Precisamos desconfiar de memórias que muitos questionam. E isto vale para todos. É fácil pensar que as fakes news não nos enganam, apenas os outros. É fácil achar que nossas memórias são confiáveis. Não são. Quando alguém confrontar uma memória sua, escute. Peça fontes. Procure informações. Cheque. No mínimo você conseguirá mostrar de maneira mais convincente o engano do outro. E talvez até mesmo perceber que sua lembrança esta te enganando.
Isto vai além da política, além do debate eleitoral. É uma lição de humildade sobre o quanto podemos estar enganados. Mas em um cenário de uso em larga escala de fake news, a consequência política do Efeito Mandela pode ser extremamente perversa.
Pois é exatamente o Efeito Mandela que permite a que pessoas reescrevam a história, até mesmo a história recente. Como, por exemplo, um presidente que diz não ter errado nada sobre a pandemia. Ou dizer que o auxílio emergencial foi criado por ele. Aconteceu a menos de 2 anos. E já temos memórias falsas quanto a isto.
*Aniello Olinto Guimarães Greco Junior é servidor público concursado do Tribunal Superior do Trabalho, Aniello Greco passou tempo demais na universidade, sem obter diploma. Já fingiu ser jogador de xadrez, de poker, crítico de cinema, sommelier de cerveja. Sabe de quase tudo um pouco, e quase tudo mal.
*As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews
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