É difícil saber se a fala é inconsciente — refletida de uma sociedade de bases escravistas fortes e ainda presentes —, ou tem total consciência do ódio de classes que destila
por Edmundo Siqueira em 05/08/21 17:23
“O porteiro do meu prédio, uma vez, virou para mim e falou assim: ‘Seu Paulo, estou muito preocupado. Meu filho passou na universidade privada’. Ué, está triste por quê? ‘Ele tirou zero na prova. Tirou zero em todas as provas e eu recebi um negócio dizendo: parabéns, seu filho tirou…’ Aí tinha um espaço para preencher, colocava ‘zero’. Seu filho tirou zero. E acaba de se endereçar a nossa escola, estamos muito felizes”. Foi assim que o ministro da Economia, Paulo Guedes, introduziu suas críticas ao Fies, programa do governo federal de concessão de financiamento a estudantes de cursos superiores. No caso específico do ministro, é difícil saber se a fala é inconsciente — refletida de uma sociedade de bases escravistas fortes e ainda presentes —, ou tem total consciência do ódio de classes que destila. Ódio evidenciado pela reincidência de frases públicas infelizes. Em fevereiro de 2020, em meio à alta do dólar, Guedes disse, justificando, que até “empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”. Preconceito e elitismo enraizados em um país que interrompeu sua história por uma ditadura sangrenta e estúpida.
Após a Segunda Guerra, o mundo vivia uma abertura democrática, e apesar de ainda polarizado em duas grandes potências, EUA e URSS, a primeira conseguiu ampliar sua área de influência econômica, política e ideológica, penetrando não apenas em países latino-americanos como o Brasil, mas também na Europa. A prosperidade econômica norte-americana no pós-guerra trazia um espírito de otimismo e de esperança, o “american way of life”, alicerçado em bens manufaturados e consumismo desenfreado, envolvia as nações ao redor do mundo.
Nos anos 1950, o Brasil sentia esse otimismo e se abria também. Mudanças no consumo e no comportamento da população que habitava os grandes centros urbanos eram sentidas. A paisagem urbana se modernizava, sustentada por uma política desenvolvimentista. O entusiasmo pela possibilidade de construir algo novo impulsionou vários movimentos no campo artístico. Eram novas formas de pensar e fazer o cinema, o teatro, a música, a literatura. Glauber Rocha e o Cinema Novo eram vanguardas, o rock n’roll de Elvis Presley e Chuck Berry influenciavam, surgiam as radionovelas e a Bossa Nova de João Gilberto, Tom e Vinicius era tocada e cantada no mundo inteiro.
Na política, o Brasil era governado por Juscelino Kubitschek, que com seu perfil desenvolvimentista fez importantes obras e mudanças. Foi o chamado “50 anos em 5”. JK abriu o país às multinacionais, facilitou a entrada de capital estrangeiro, fortaleceu a Petrobras e a indústria viveu um grande crescimento. O país parecia seguir uma direção, os avanços eram evidentes, arte e cultura eram valorizadas e a educação pública começava a se democratizar.
Os filhos de porteiros e de empregadas domésticas poderiam sonhar com empregos decentes e garantia de direitos básicos e poderiam viver em um país que não os matassem por serem “pobres de tão pretos e pretos de tão pobres”, citando Gilberto Gil. E dificilmente seres iletrados e distantes da realidade como Paulo Guedes e Bolsonaro estariam em cargos tão importantes. O problema é que a história não aceita a conjunção subordinativa condicional “se”. E em 1964 ela se impôs, implacável como de costume, e um golpe levou o país ao obscurantismo criminoso do regime militar. E os anos 50 e 60 se tornaram apenas lembranças, sem possibilidade de produzir frutos, mortos por censura e tortura. Ah, se pudessem.
Edmundo Siqueira é jornalista, servidor federal e agente cultural.
* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews
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