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Você não deveria saber com quem está falando!

Na obra “Carnavais, malandros e heróis”, Roberto DaMatta dedica algumas páginas a observar que muitos de nós nos deparamos com a pergunta: “Você sabe com quem está falando?”

por Renato de Almeida Eliete em 28/10/21 21:54

Uma família, em viajem de férias, trafega de carro por uma estrada no interior do Nordeste. Em dado momento, diante de uma blitz rodoviária, ela é instada a parar o veículo no acostamento, após o aceno de um policial. Em meio ao calor intenso, típico do local e da época do ano, o guarda aproxima-se da porta da frente do automóvel, espera que o motorista abaixe o vidro da janela e pergunta a ele, antes de qualquer outra coisa: “Tem alguém importante aí?”.

Na obra “Carnavais, malandros e heróis”, do antropólogo fluminense Roberto DaMatta, ao longo da análise de alguns rituais da cultura brasileira, dos quais o Carnaval é seguramente um dos mais significativos, o autor dedica algumas páginas a observar que, em meio a situações de confronto social, não raramente muitos de nós nos deparamos com a seguinte pergunta: “Você sabe com quem está falando?”.

Da mesma forma que se pode inferir muito sobre o caráter de uma pessoa quando se observam não apenas os seus comportamentos usuais, mas também as suas frases recorrentes; os ditados e as máximas podem informar muito acerca da visão de mundo que norteia um determinado grupo social ou até mesmo uma nação.

No Brasil, perguntas como aquela observada pelo antropólogo são reveladoras de uma concepção da vida em sociedade que privilegia a assimetria nas relações dos indivíduos entre si e entre classes sociais distintas. Elas expõem muito do elitismo típico dos extratos mais abastados da nossa sociedade. Como se diz: “Todos somos iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que outros”.

Em países diferentes, notadamente nos Estado Unidos, é comum, também em situações de confronto, ouvirem-se perguntas do tipo: “Quem você pensa que é?”. Isso pode ser interpretado como o reflexo de uma noção do convívio social que confere ênfase não à assimetria nas relações entre os cidadãos ou entre as classes sociais, mas à equidade diante das instituições, em particular; e das leis, em geral.

O comediante estadunidense Cris Rock, em um de seus textos, observa que no condomínio em que vive, no qual reside apenas mais um outro astro de Hollywood, negro como ele; todos os seus vizinhos são brancos: médicos, engenheiros, advogados, dentistas que, em sua maioria, não são expoentes destacados em suas respectivas profissões. O humorista afirma então que, caso fosse dentista, por exemplo, e sendo negro, para morar naquele local, ele teria certamente de ter inventado algo tão importante para essa atividade quanto o próprio dente.

Não se está aqui, portanto, tentando insinuar que haja mais justiça social na terra natal do George Floyd (morto por um policial, em 25 de maio de 2020, em Minneapolis) do que no país do João Alberto Silveira Freitas (morto por seguranças de um supermercado, em 19 de novembro de 2020, em Porto Alegre). As lutas pelos direitos civis têm sido muito intensas e dolorosas nos dois países, fato em si mesmo revelador das estratificações típicas de duas sociedades bastante desiguais.

Para aquilo que interessa à nossa autodeterminação como nação, no entanto, já passa da hora de consolidarmos definitivamente as instituições democráticas do Estado brasileiro. Isso, em detrimento das conveniências de governos específicos e em nome de políticas de Estado efetivas. É necessário alijarmo-nos do patrimonialismo, a falta de limites entre o público e o privado; do compadrio, a proteção pouco republicana ao círculo de relações pessoais; do messianismo, a crença em um mito libertador, um indivíduo que resolverá todos os problemas do país como um mágico ou um super-herói.

Precisamos de instituições democráticas estáveis e impessoais. Instituições sólidas e funcionais o suficiente para que atuem de maneira independente dos indivíduos que circunstancialmente as componham ou que possam ser por elas afetados; para que haja segurança jurídica plena e perene; para que tenhamos todos o mesmo valor como cidadãos; para que, em situações de confronto social, não precisemos mais saber com quem estamos falando.


Quem é Renato de Almeida Eliete?

Renato de Almeida Eliete é cientista político e escritor

* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews


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