Eduardo Martini bebe na fonte de Dario Fo e faz crescer Aleluia, tragicomédia sobre o peso do patriarcado CRÍTICA

Eduardo Martini bebe na fonte de Dario Fo e faz crescer Aleluia, tragicomédia sobre o peso do patriarcado


Espetáculo que chegou aos palcos há pouco mais de 15 anos, quando Eduardo Martini gozava de alta popularidade resultante de sua participação no programa de Hebe Camargo (1929-2012), no SBT, I Love Neide – Manual de uma Cinquentona Atrevida deu o ponta-pé na trajetória do ator e diretor como a perfeita tradução de personagens femininas que fogem ao clássico estereótipo da comédia paulista – recheada de homens (tra) vestidos de mulher para fazer graça.

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Ao enveredar por personagens como a mau humorada dona Campainha, de Chá das Cinco, ou a jovial Valentina em O Filho da Mãe – a comédia dramática que se sobressai como um dos melhores títulos da trajetória do ator de criação carioca -, Martini injetou reflexões sobre a sociedade machista e patriarcal ao fugir ao lugar comum da comédia simplória e mergulhar no tempo da delicadeza cênica, seja discutindo os efeitos do tempo, seja sobrevivendo à síndrome do ninho vazio.

E é justamente essa delicadeza que injeta ambição e relevância em Aleluia – Um Estouro de Mulher, comédia de Márcio Azevedo e Ricky Hiraoka que, a despeito do título, se revela tragicomédia de fôlego para discutir temas como a solidão, o patriarcado e os efeitos da sobrecarga feminina envoltos em uma história nonsense que presta tributo direto ao teatro besteirol – traduzido desde o visagismo assinado por Martini até as dinâmicas da encenação de Viviane Alfano.

A obra narra a história de Aleluia, uma mulher que, frente a frente com um juiz, fala sobre seu dia a dia de sobrecarga com a casa, o marido, a filha, os problemas familiares e a sogra já centenária e que mal sai da cama. Perdida em uma paixão platônica por um ator pornô que se muda para a vizinhança, a dona de casa explode o forno da cozinha na noite de Natal.

A princípio simples, a dinâmica da encenação proposta por Viviane Alfano – que repete a dobradinha com Martini, iniciada em 2020 com a estreia de Simplesmente Clô – bebe de fontes como a do comediógrafo italiano Dario Fo (1926-2016), ao estabelecer uma personagem à beira do abismo da sanidade causado pelo cotidiano.

Foto: Iara Morselli

Martini e Alfano constroem diálogo direto com o público numa narrativa que jamais perde o dinamismo, ainda que o texto nem sempre esteja à altura do jogo proposto pela dupla. Azevedo e Hiraoka alicerçam a dramaturgia em chavões e lugares comuns que nem sempre auxiliam o ritmo da montagem, ainda que superem irregularidades da típica comédia carioca da década de 1990.

E talvez este seja o senão de Aleluia – Um Estouro de Mulher. Embora seja obra que flerte com o registro nauseante de uma Shirley Valentine, por exemplo, a obra enfileira piadas que nem sempre resultam interessantes. A montagem cresce mesmo quando a personagem discute – mesmo com humor – temas menos óbvios – é excelente a discussão acerca da sexualidade na terceira idade e da repressão de desejos, por exemplo.

A obra, é verdade, atinge o ápice quando, já no desfecho, Martini interpreta, em tom nonsense Balada do Louco, o standard tropicalista do grupo Os Mutantes que Ney Matogrosso tomou para si em meados da década de 1980. Martini mergulha no registro tragicômico de momento singelo que – por imposição mercadológica – dissipa toda a delicadeza em registro pop que destoa não apenas da discussão levantada ao longo da montagem.

Simples, a cenografia é focada em cubo cênico que se transforma à medida que a montagem se desenvolve, mesmo que o real destaque esteja no (bom) desenho de luz, ambos pensados pela dupla Alfano e Martini, que corta eventuais gorduras de um texto que é valorizado muito mais pelo jogo cênico de seu intérprete e o diálogo que estabelece com o público que, de fato, se compadece da personagem principal – egressa de experimento virtual nas redes do ator.

Embora esteja longe de roçar o brilhantismo de obras anteriores de Martini, como a supracitada comédia dramática O Filho da Mãe, de Regiana Antonini, e as tragédias Dark Room, de Mario Viana, e Angel, de Carlos Fernando Barros e Vitor Oliveira, Aleluia – Um Estouro de Mulher é obra que reforça a sina de Martini, habilidoso artesão da comunicação popular capaz de conduzir o público sem jamais se deixar vender pelo riso fácil.

SERVIÇO:

Aleluia – Um Estouro de Mulher

Data: 27 de março a 05 de Junho (domingos)

Local: Teatro União Cultural – São Paulo (SP)

Endereço: Rua Mário Amaral, 209 – Paraíso

Horário: 19h

Preço do ingresso: R$ 40,00 (meia) a R$ 80,00 (inteira)

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