Não é tarefa fácil fazer um filme cômico com uma das figuras mais nefastas do planeta no século 20, que de fato deixou um rastro de sangue no Chile
Em 14/09/23 15:12
por Coluna da Sylvia
Sylvia Colombo nasceu em São Paulo. Foi editora da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e atuou como correspondente em países como Reino Unido, Colômbia e Argentina. Escreveu colunas para o New York Times em Espanhol, o Washington Post em Espanhol, e integra os podcasts Xadrez Verbal e Podcast Americas. Entrevistou a vários presidentes da regão. Em 2014, participou do programa da Knight Wallace para jornalistas na Universidade de Michigan. É autora do "Ano Da Cólera", pela editora Rocco, sobre as manifestações de 2019 em vários países da regiõa. Vive entre São Paulo e Buenos Aires, enquanto viaja e explora outros países da Latam
Na sátira política “O Conde”, de Pablo Larraín, o ex-ditador chileno Augusto Pinochet não morreu. Afinal, ele se trata de um vampiro, nascido na França pré-revolucionária com o nome de Claude Pinoche e, hoje, cansado de tomar sangue e não morrer jamais, vive num isolado casarão num ponto indefinido da Patagônia.
Não é tarefa fácil fazer um filme cômico com uma das figuras mais nefastas do planeta no século 20, que de fato deixou um rastro de sangue no Chile. Mas o habilidoso Larraín diretor de “Spencer” (sobre a princesa Diana) e de “No” (sobre o plebiscito que marcou o fim da ditadura chilena) consegue driblar o que poderia ser de mau gosto e acerta em não humanizar o ditador, ao contrário, deixa que as próprias situações pelas quais passa o façam.
Depois de mostrar brevemente sua vida na França, quando viola até mesmo o túmulo de Maria Antonieta e rouba sua cabeça, o jovem Claude Pinoche vai parar no Chile. Segundo a ficção, ele teria fingido sua própria morte, em 2006, indignado por estar sendo julgado por corrupção e não elogiado por ter “matado tantos comunistas”.
Durante a noite, mesmo já velho, o ditador ainda caminha pela casa patagônica usando seus velhos uniformes. Em sua cozinha, há centenas de corações congelados. Quando sente fome fora de hora, desce e prepara um “shake” para se revigorar”. E voa, vai até a Santiago de hoje e a sobrevoa até encontrar uma outra vítima de quem rouba o sangue e o coração.
Numa das cenas mais escalofriantes, o filme, que é todo em branco e preto, mostra Pinochet com sua capa militar no pátio interno do Palácio de La Moneda. Ele vai olhando a fila de bustos de presidentes e sente falta do seu, por isso se coloca entre os de Salvador Allende, o que presidente que ele derrubou, e o de Patricio Aylwin, o primeiro mandatário eleito pós-redemocratização do país.
Pinochet também recebe a visita dos filhos, ávidos por uma herança que ao parecer nunca virá, uma vez que o pai nunca morrerá. Ele vive acompanhado da mulher Lucía Hiriart, uma voz forte da ditadura, que atuava com frequência ao lado de Manuel Contreras, o temido chefe da DINA, a polícia secreta do Chile. No filme, Pinochet também morde Hiriart e a transforma em vampiro, ou seja, ela também nunca morrerá, para o terror dos filhos, que estão quebrados financeiramente.
Quem aparece de visita é “Maggie”, ou Margaret Thatcher, para lembrar os tempos em que Pinochet a ajudou a vencer a Guerra das Malvinas. Ah, Thatcher também é um vampiro e chega voando desde Londres.
Perguntado pelo jornal The Guardian sobre como fazer uma sátira de uma história que ainda é uma ferida aberta para os chilenos, Larraín diz que “qualquer forma de narrativa precisa de uma crise, seja Shakespeare ou seja uma comédia grega. A história recente do Chile é uma crise. Eu não saí dessas fronteiras”, conta.
Num cinema de Santiago, o filme foi visto às gargalhadas do público nas cenas mais cômicas. É de se esperar que os cerca de 30% da população que ainda tem simpatias pelo general sequer pense ir assistir um filme que o pinta de modo ridículo.
“Tivemos de trabalhar muito para saber como abordar Pinochet. Um retrato dele no cinema ou na TV nunca foi feito. A combinação de comédia e sátira, minha opção, talvez seja a única possível”, afirma o diretor. O personagem é encarnado pelo ator veterano Jaime Vadell. “Se evitarmos a sátira, podemos rapidamente cair em um tipo de empatia que não é aceitável”, acrescentou o diretor. O filme já foi exibido em festivais estrangeiros e desembarca amanhã (15) por aqui, numa produção da própria Netflix.
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