Pois agora já não temos mais a censura, nem a ditadura militar, mas o drama narrado em Antígona — o direito inalienável de as pessoas sepultarem os seus — permanece atual.
Em 09/04/24 12:38
por Conversas com Cid
Cid de Queiroz Benjamin é um jornalista e político brasileiro. Nos anos 1960 e 1970, militou na luta armada, tendo sido dirigente do movimento estudantil em 1968 e integrante da resistência à ditadura militar, responsável pelo setor armado do Movimento Revolucionário Oito de Outubro.
Certas obras atravessam os séculos sem perder a validade. Assim são determinadas peças da Grécia antiga. É o caso, por exemplo, de Antígona, escrita por Sófocles (497 a.C – 406 a.C.). Ela mantém a sua força por tratar, de maneira extremamente sensível, de um elemento permanente da natureza humana: a importância e o direito de as pessoas darem uma sepultura digna a seus entes queridos. Daí a atualidade de Antígona.
A peça conta a história de uma mulher que descumpre as determinações do poderoso rei Creonte, de Tebas, ao insistir em dar um sepultamento normal para seu irmão Polinice, o que tinha sido proibido pelo soberano, que o acusava de traição. Ao não se curvar diante dos poderes despóticos de Creonte, Antígona dava um mau exemplo para a sociedade. Por isso, foi punida.
A encenação da peça nos tempos de ditadura brasileira desagradou os militares. Afinal, a história valorizava a insubmissão diante de ordens do detentor supremo do poder. A peça foi, então, censurada.
Depois de impedir que a história fosse contada no teatro, um dos policiais perguntou pelo seu autor, Sófocles, disposto a levá-lo preso como subversivo. Foi, então, informado de que ele estava morto há quase 2.500 anos. O episódio foi noticiado pelos jornais, que, naquele momento, não estavam sob censura.
Não foi a primeira, nem a única vez, em que os déspotas caíram no ridículo.
Pois agora já não temos mais a censura, nem a ditadura militar, mas o drama narrado em Antígona — o direito inalienável de as pessoas sepultarem os seus — permanece atual. Lamentavelmente, nos dias que cercaram o 60º aniversário do golpe militar, voltou à cena. E com a participação de um governo progressista.
O presidente Lula, com o argumento de que não queria “remoer o passado”, proibiu a participação de integrantes do governo em atos críticos ao golpe de estado ocorrido em 1964, que atropelou a democracia, torturou e matou adversários políticos do regime militar. Aproveitou o ensejo e reafirmou que não aceitaria a reabertura de comissões governamentais que investigam as circunstâncias dos assassinatos e tentam localizar restos mortais de adversários do regime mortos pela ditadura.
Com sua atitude tinha o objetivo de fazer um agrado aos militares.
Pude conviver muito de perto com famílias que, durante décadas, viveram na esperança de que filhos e irmãos, presos na ditadura e dos quais não tenham notícia, reaparecessem. A cada Natal, a cada Ano Novo, a cada aniversário de pai ou mãe, essa expectativa vinha, de novo, à tona.
Muitas dessas famílias se recusavam a mudar de endereço, porque aquele em que viviam era conhecido do parente desaparecido, que supostamente poderia voltar.
Hoje, em grande parte dos casos a maior aspiração dessas pessoas não é a punição dos assassinos e torturadores. Mesmo a esperança de que seus filhos, pais ou irmãos pudessem aparecer vivos, depois de tanto tempo, foi deixando de existir.
Mas um desejo continua muito forte: tal como queria Antígona, na peça escrita há mais de dois mil anos, gostariam de dar-lhes uma sepultura digna.
Tal como a de Antígona, esta é uma aspiração legítima.
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